“…soprou sobre eles e
disse: ‘Recebei o Espírito Santo’” (Jo 20,22)
A
liturgia da festa de Pentecostes deste ano nos situa no momento do encontro do
Ressuscitado com seus discípulos, literalmente “trancados” numa sala, incapazes
de romper seus medos, marcados por uma profun-da tristeza e decepção.
O
Ressuscitado, ao exercer o “ofício do consolar” (S. Inácio), desperta
novo ânimo naqueles homens desolados, graças ao sopro vital do seu Espírito, que se torna
ação criadora e rompedora de tudo que limita. O Ressuscitado não só se
apresenta e fala, mas comunica a si mesmo: entrega o seu Espírito, Aquele mesmo
que o conduzia criativamente pelas estradas da Galiléia, instaurando o novo
Reinado do Pai.
Pentecostes é, para os cristãos, a festa do Espírito. Ao dizer que
Deus é Espírito, estamos dizendo que Ele não é um “ser fechado em si”, senão
abertura, ser-para-os-outros. Chamamos Deus “Espírito” porque é força criadora
e criativa, alento no qual todas as coisas e os humanos se sustentam. Toda a
realidade, perpassada pelo dinamismo divino, só tem sentido em Deus; todas as
“coisas” são em Deus. Também o ser humano: ele existe unicamente a partir do
“sopro” do Espírito divino, que lhe dá autonomia e liberdade.
Em
outras palavras, o Espírito é o espaço aberto do amor oblativo e presença que
estabelece continuamente o “cosmos” em meio ao “caos”; é Deus mesmo como força
expansiva e como fundamento de vida de tudo e de todos, como seio maternal e
fecundante no qual podemos chegar à existência verdadeira. Por isso, o ser
humano nunca vive a partir de si nem para si mesmo; existe imerso no Espírito
divino e caminhando para o futuro (o novo nascimento) ao qual o Espírito lhe
abre.
“Recebei a Ruah”, assim deve ter dito Jesus. Em sua língua materna, Jesus
chamava o Espírito de “Ruah”. É uma pobreza falar só do “Espírito Santo”
e deixar de lado a riqueza semântica da “ruah”, que, em hebraico, tem
conotações muito mais ricas que o termo latino “spíritus”.
Assim,
a expressão hebraica “Ruah”, feminino de Deus, significa a brisa, o “pairar” de
Deus sobre as águas, o sopro impetuoso que gera vida. Alento, vento, sopro,
respiração, força, fogo... com nome feminino, que fala de maternidade e de
ternura, de vitalidade e carícia.
Assim
como Jesus, pela força da “Ruah”, se encarnou e se humanizou, também nós nos
fazemos cada vez mais humanos, por obra da mesma “Santa Ruah” de Deus. Ela nos faz
pressentir o quanto amados somos, que, na comunhão, nunca estamos sozinhos, e
que esta é a hora para cada um(a) de nós e o melhor momento que nos cabe viver. Sob o
impulso da “Ruah”, vivemos todos no "horário nobre da vida”.
É
a “Ruah” quem nos move a superar os esquemas atrofiados da vida e a assumir uma
causa mobilizadora, centrada no Reino anunciado por Jesus. É Ela que nos
arranca das malhas do egoísmo, liberta-nos dos interesses mesquinhos, faz-nos
caminhar no terreno firme do amor, abre novos horizontes e nos impulsiona a
assumir ideais mais elevados de felicidade e realização pessoal.
Ela
continua presente na vida de todo(a) seguidor(a) de Jesus e no seio de sua
comunidade. Continua atuando através de muitas pessoas e organizações que se
comprometem radicalmente na luta contra tudo aquilo que rompe os vínculos,
alienam e desumanizam. A “Ruah” de Deus continua atuando na história, embora
aparentemente não a percebamos. Não é necessário fazer tanto barulho para dizer
que a “Ruah” está agindo através de um discreto silêncio. Muitas vezes, não a
sentimos porque atua de maneira muito simples, através de gestos que podem
passar desapercebidos.
Portanto,
viver alentados pela e na Ruah é também um convite a harmonizar sabiamente os
opostos da vida: experiência de fortaleza/experiência de debilidade,
silêncio/palavra, trabalho/descanso, partilhar/receber, presença/ausência,
conectar/desconectar, saber caminhar acompanhados/saber estar a sós saboreando
a dimensão positiva e fecunda de uma “solitude” (solidão habitada) que
enriquece nosso mundo interior e fortalece nossas opções e compromissos.
Por
outro lado, as consequências de viver sem o Espírito-Ruah, Espírito-Sophia, são
realmente desastrosas. A vida cristã sem “Ruah” se revela como um conjunto de
normas em uma instituição a mais, carregada de moralismo, doutrina estéril e
ritualismos vazios. Fica obsoleta, porque não interpreta os sinais dos tempos,
odres velhos para vinho novo.
Sempre
é a “Ruah” que nos unifica, Aquela que nos convida a superar a divergência que
é fruto de nosso falso eu. Nela, a diversidade nos enriquece.
É
a “Ruah” de Deus, do amor, do comunitário e do comum, do povo de Deus. N’Ela já
não é possível permanecermos fechados, pois Ela transpassa as paredes e quebra
os ferrolhos das portas, nos faz abertos de coração e de mente, frente às
reservas e às dúvidas do temor.
Com
seus dons, compreendemos que o universo é nossa casa e nós não somos estranhos
nela, que a humani-dade não caminha no vazio de uma existência do nada, senão
rumo à Casa Comum do Pai, e que a senda é a dos irmãos na comunidade, em
direção a um horizonte sempre inspirador.
O
ser humano, desde sempre existe enquanto está fundamentado (protegido e
potenciado) na Ruah.
Constituído
de argila, como vaso nas mãos de um ceramista, cada um recebe o sopro ou hálito divino. É a própria Vida de Deus, o seu sopro vital, que
faz surgir o humano do húmus da terra. É a “Ruah” de Deus, inspirado no ser
humano, que o torna realmente humano.
Cada
pessoa é portadora deste sopro de Deus e desta força misteriosa que o impulsiona à plenitude.
O sopro de Deus impresso no mais profundo de
nosso ser, está enfaixado pela fragilidade da argila.
Somos
a grande combinação resultante do sopro de Deus e da argila que nos configura.
Cada
um de nós é a força criativa de Deus impressa em cada coração. O respiro ou hálito é
o símbolo da presença do Criador em nós. Sob o signo de Adão, nós somos, em
primeiro lugar, criaturas de Deus em comunhão com as demais criaturas,
participando da mesma existência criatural. Mas, pelo sopro do próprio Deus, somos “elevados” à condição de imagem e
semelhança d’Ele.
Então,
tornamo-nos “criaturas abertas ao Espírito” e, mais ainda, “criaturas
habitadas pelo Espíri-to”; somos argila, mas argila
portadora da “Ruah”, argila aberta ao céu. Tornamo-nos, assim, imagem do mundo
diante de Deus e imagem de Deus diante do mundo.
Nos
relatos bíblicos, a “Ruah de Deus” se revela sempre “rompedora”, pois é Ela que
“alarga o espaço de nossa tenda interior”. É como se derrubasse as paredes,
abrisse portas e janelas e nos oferecesse espaços amplos de encontro. Desse
modo, cabe mais gente em nossas vidas e a “Ruah” nos ajuda a descobrir a
fraternidade e sororidade como um dom.
A
“Ruah Santa” é aquela que faz estremecer as estruturas, que toca nos lugares
mais profundos e nossos. Ela vem como gesto de Deus que arranca nossas vidas do
porto seguro da acomodação e nos lança para os mares abertos do novo e das
surpresas. Nela, quanto mais navegamos, mais descobrimos novos mares.
E
nunca faltará o Vento ao nosso veleiro.
Texto bíblico: Jo 20,19-23
Na oração: “Vem, Santa Ruah!”: é o clamor, o gemido, a oração universal. Melhor:
é a Ruah quem clama, geme e ora no mais profundo de seu ser e no mais profundo
de tudo quanto existe. O universo é oração.
-
Deixe a Ruah fluir livremente; assim, a vida espiritual será para você aquela
vida na qual a Ruah poderá se mover sem obstáculos. Uma espiritualidade
holística que experimenta a presença d’Ela na totalidade de sua vida, em todas
as dimensões da realidade: a história, a natureza, a interioridade, as relações
humanas, a luta pela justiça, o descanso, o trabalho etc. Todos estes são
lugares onde a Ruah se manifesta.
-
Como exercício prático, localize em sua vida os momentos de profundas mudanças
nos quais você se atreve a chamar “Pentecostes”, porque lhe fizeram descobrir em seu interior, a
presença da Ruah de um modo novo, mais vivo e vigoroso; porque lhe fizeram ver
as pessoas e a realidade com reverência; porque lhe fizeram sair de visões e
atitudes estreitas; porque lhe tornaram diáfano (transparente) da presença de
Deus no cotidiano de sua vida...
-
Em sintonia com toda a Criação, abra espaço à presença e voz da “Ruah” em seu
coração.
Pe.
Adroaldo Palaoro sj
Fonte: centroloyola.org.br
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