“Tu te preocupas e andas
agitada por muitas coisas” (Lc 10,41
No
evangelho de Lucas, o caminho de Jesus a Jerusalém marca uma progressiva
manifestação do Reino. À medida que avança em seu percurso, Ele vai despertando
e preparando seus(suas) seguidores(as) a viver as atitudes indispensáveis de um(a)
verdadeiro(a) discípulo(a): a presença compassiva, o espírito de acolhida, o
abandono das pretensões de poder, a escuta de sua Palavra... Tais atitudes
exigem romper com o ritmo estressante da vida para que todos se coloquem,
serena e atentamente, aos pés do Mestre. Esta eleição, que aos olhos da
eficiência pode parecer superficial e inútil, é uma condição fundamental para
chegar a ser um(a) autêntico(a) discípulo(a).
No
seu caminho em direção a Jerusalém, o evangelho deste domingo nos revela que
Jesus é recebido por duas irmãs, numa casa de família. Este episódio é algo
surpreendente. Os discípulos que acompanham a Jesus desaparecem da cena.
Lázaro, o irmão de Marta e Maria, está ausente. Na casa da pequena aldeia de
Betânia, Jesus se encontra a sós com duas mulheres; ao hospedarem Jesus, o
cotidiano de Marta e Maria se altera por completo; elas precisam modificar os
próprios hábitos, os próprios ritmos, reordenar as próprias atenções e
ocupações.
Com
o “Senhor” em casa, tudo muda; graças a Ele, tudo deve encontrar
uma nova “ordem”. Jesus, o peregrino sem casa, está no centro de todas as
atenções que uma verdadeira hospitalidade exige. No entanto, Marta e Maria reagem de maneira diferente no
encontro com o Mestre ilustre.
Aqui
nos deparamos com duas atitudes diferentes. Uma, de total atenção e escuta;
outra, de ansiedade, devido aos afazeres habituais e distração. Maria, sentada aos pés de Jesus,
põe-se à escuta das suas palavras; Marta, ao invés, fica totalmente tomada pelas tarefas e preocupações.
Acolhendo-O
e escutando-O, Maria encontra paz, serenidade, tempo, expectativa; Marta, ao
contrário, não consegue encontrar a paz; agita-se, preocupa-se, fica
insatisfeita, desconcentrada, em contínua ação. Ativis-mo sem sentido, sem intenção, sem
motivação...
O
ritmo da vida cotidiana tinha aprisionado a Marta, tornando-a surda à escuta da
Palavra. Ele recebe Jesus, mas não o escuta. Embora Jesus entre em sua casa,
ela o deixa à porta.
Maria, ao contrário, compreende bem o projeto de Jesus e rompe com os
preconceitos culturais de sua época. Sua atitude é surpreendente pois está
ocupando o lugar próprio de um “discípulo”, que só correspondia aos homens. Em
lugar de andar atarefada com as atividades domésticas “próprias das mulheres”, “sentou-se aos
pés do Senhor e escutava sua palavra”. Este gesto, reservado culturalmente aos discípulos
varões, a confirma como discípula. De fato, Maria fez a melhor opção: decidiu
aprender a escutar a Palavra e se deixa interpelar pela presença do Mestre.
Marta,
ao fadigar-se com o interminável trabalho da casa, questiona a contraditória
atitude de Maria e interpela o Mestre para que sua irmã, como mulher, se
“coloque no seu devido lugar”. No fundo, o que ela pede a Jesus é que mande sua
irmã voltar às tarefas próprias de toda mulher e deixe de ocupar o lugar
reservado aos discípulos varões.
Jesus
lhe dá uma resposta inesperada: felicita Maria porque acertou em sua eleição e
repreende Marta por deixar-se envolver pelas preocupações cotidianas sem
atender ao que é mais importante.
Em
nenhum momento Jesus critica Marta por sua atitude de serviço, tarefa
fundamental em todo seguimento d’Ele, mas a convida a não se deixar absorver
por seu trabalho a ponto de perder a paz. E recorda que a escuta de sua Palavra
deve ser prioritária para todos, também para as mulheres, e não uma espécie de
privilégio dos varões. Jesus não despreza a acolhida de Marta, mas seu modo de
trabalhar, nervosa, sob a pressão de muitas ocupações. Ele a alerta, e a todos
nós, do perigo de viver absorvidos pelo excesso de atividades, apagando em nós
a paz, contagiando nervosismo e cansaço e esvaziando a mística da
acolhida.
Tem
sido frequente ler este texto em chave dualista, reforçando a superioridade da “vida
contemplativa” sobre a “vida ativa”. No entanto, o sentido original do texto está no fato de
afirmar a primazia do discipulado acima de qualquer outra atividade. Com
efeito, a expressão “estar sentado(a) aos pés de Jesus” constitui a atitude fundamental
do “ser discípulo(a)”.
O
texto imediatamente anterior, onde o bom samaritano aparece como um modelo por
sua ação solidária, impede interpretar a cena de Betânia como uma
desqualificação da ação em favor da contemplação; o contexto chama a atenção diante de uma maneira de
agir que não nasce da escuta da Palavra, mas do próprio ativismo compulsivo. A
escuta da Palavra inspira e dá sentido a toda ação. Ativismo ou ação insensata
(sem sentido) revela auto-centramento, comparação, competição, queixa...
Marta se precipita em “fazer” e este “fazer” não nasce de uma escuta
atenta da palavra de Jesus, correndo o perigo de se converter em um estéril
girar sobre si mesma. Ela se limita, apesar de sua boa intenção, a acolher
Jesus em sua casa. Maria, no entanto, o acolhe “dentro de si mesma”, oferece-lhe hospitalidade
naquele espaço interior, secreto, e que está reservado só para Ele. Marta
oferece “coisas” a Jesus; Maria oferece a si mesma; ela elegeu a “melhor
parte”. Marta, ao querer que não faltasse nada ao hóspede importante, acaba
deixando passar clamorosamente por alto “a única coisa necessária”.
Podemos
pensar que Marta e Maria, mais que duas pessoas, são duas atitudes, duas tendências que todos temos
e somos na vida. Muitas vezes vivemos num ativismo desenfreado e acabamos
perdendo o fluxo de uma vida mais harmoniosa, integrada e pacificada.
Somos
seres de ação, mas também somos seres necessitados de calma, serenidade,
contemplação... Como integrar Marta e Maria, como harmonizar ação e
contemplação? Eis a questão! Segundo o místico Eckhart, trata-se de deixar subir o que vem
do fundo, de executar ações assinaladas pelo selo da interioridade e da profundidade.
“Vai para o
teu próprio fundo e lá age! Com efeito, todas as obras que aí executas, vivem!”
Não
se trata, portanto, de qualquer ação, mas daquela que vem das profundezas.
A ação que tem sabor e frescor de “nascente”: a ação contemplativa ou o “agir
tranquilo”.
Nós,
hoje, nos deparamos com um ritmo de vida mais agitado que em épocas anteriores.
Os meios proporcionados pela tecnologia para economizar tempo também
multiplicam as ocupações e acabam fazendo-nos cair num ativismo desenfreado. E
o excesso de preocupações nos leva a esquecer do fundamental...
Nervosismo,
inquietação, queixa, confusão, sofrimento... nascem sempre como consequência de
nossa identificação com o eu separado. Esse é o “pecado original” porque, nessa
crença errônea se origina a ignorância radical que se traduz irremediavelmente
em sofrimento.
Desse
modo, nossa vivência como discípulos(as) se converte em um tímido cumprimento
de algumas normas e obrigações religiosas, sem espaço para o silêncio e a
escuta da Palavra. Somos exortados, somos bombardeados continuamente com
mensagens que nos cobram ser mais eficazes, produtivos e competitivos. Mas, com
Marta e Maria, Jesus nos interpela e nos chama a investir no essencial:
colocar-nos a seus pés para escutar sua palavra.
Texto bíblico: Lc 10,38-42
Na oração: Acolher o convite para entrar na própria casa
(interioridade), espaço do encontro com o Divino Mestre.
-
des-vele (tire o véu) as preocupações, agitações, ansiedades... ali presentes.
-
Seja casa aberta e acolhedora, onde o Senhor vem ao seu encontro para lhe falar
ao coração. O encontro com Ele se prolonga no encontro acolhedor com os outros.
Pe.
Adroaldo Palaoro sj
Fonte: centroloyola.org.br
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