Igrejas
precisam se desclericalizar e retomar a leitura da Bíblia pela ótica dos
oprimidos Foto (Pixabay)
Hegemonia católica predominou
durante décadas e na primeira metade do século XX ensaiou possuir um braço
político
Em recente artigo, o
teólogo Allen Dwight Callahan ressalta que, enquanto a Teologia da Libertação
(TdL) quer mudar o mundo, a da Prosperidade quer mudar as pessoas. Nós, adeptos
da TdL, fizemos opção pela galinha que, se for saudável, nos ofertará ovos de
qualidade. Já os fundamentalistas optaram pelos ovos, que merecem
cuidados para que, no futuro, o galinheiro inteiro seja digno de bênçãos
divinas...
Outrora, a Igreja
Católica acreditava também que chocar bem os ovos e cuidar dos pintinhos
possibilitaria surgir galinheiros baseados nos mais elevados princípios
cristãos. Criou uma rede mundial de escolas católicas que, ao evangelizar
crianças e jovens, gestariam mais tarde adultos coerentes com a ética
evangélica. A prática, entretanto, comprovou o contrário, como acontece hoje em
muitas Igrejas evangélicas fundamentalistas, cujos pastores são flagrados em
corrupção.
Como bem assinala
Callahan, “a tendência persistente do evangelismo é pactuar com o domínio do
capitalismo e dos seus catalizadores políticos. A tendência geral, aliás, é
para os evangélicos ajustarem sua fé e prática à economia política do
capitalismo, por vezes reconhecendo as contradições perversas, nunca
resolvendo-as. Nesse sentido, a religião evangélica negocia essas contradições
em troca de um armistício precário com o regime capitalista. Atualmente, o
evangelismo acomoda um capitalismo voraz e destrutivo, e também
endurecido em suas formas cada vez mais misantrópicas e cleptocráticas,
perpetrando crimes flagrantes.”
Para Marx, que nasceu
e foi educado dentro de um regime de cristandade, o Estado cristão prussiano de
caráter luterano já havia se dado conta de que “o dinheiro é o vínculo que
costura a vida humana, que cimenta a sociedade. (...) É a divindade visível
(...), a prostituta universal.” (Manuscritos econômico-filosóficos) “O
dinheiro é o deus entre as mercadorias” (Grundrisse).
O poder de cooptação
do sistema capitalista se mostra muito mais sedutor que os ensinamentos
cristãos. Por isso, são inumeráveis os líderes políticos e empresariais
educados em instituições católicas que, agora, se destacam como corruptos,
nepotistas, arrivistas, cumpliciados com quem mantém trabalhadores em situação
análoga à escravidão, devasta florestas, sonega o fisco etc. Seus
interesses capitalistas falam muito mais alto que os propósitos cristãos. Até
porque adotam um procedimento no mínimo contraditório: são contra a legalização
do aborto e aplaudem massacres promovidos por forças policiais; chamam de
irmãos os fiéis de sua Igreja e não disfarçam o preconceito étnico; incensam as
bem-aventuranças frisadas por Jesus, mas têm fome e sede de mais poder e
riqueza.
Se o catolicismo se
instalou no Brasil de braço dado com os colonizadores, em cujas fazendas
mantinham capelães que faziam vista grossa ao sofrimento dos escravos, os
evangélicos aqui chegaram a partir de 1870, quando três mil vieram da Virgínia
(EUA), convidados pelo Império. Traziam na bagagem uma cultura típica do sul
dos EUA: racista, escravocrata e favorável à supremacia branca de perfil protestante.
A hegemonia católica,
entretanto, predominou durante décadas. E, na primeira metade do século XX,
ensaiou possuir um braço político que, talvez, viesse a se transformar em
partido: a Liga Eleitoral Católica (LEC). Os bispos indicavam os candidatos que
mereciam fé. Porém, o Partido Democrata Cristão surgiu para tentar cumprir esse
papel de braço político da hierarquia, embora sem o êxito de sua matriz
inspiradora, a Itália.
Foi na década de 1970
que os evangélicos trouxeram ao Brasil a Teologia da Prosperidade (TdP), a
bordo do pentecostalismo. Ela havia sido politicamente exportada pelo órgãos de
inteligência dos EUA, como a CIA, com a finalidade de deter o avanço das
Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e a Teologia da Libertação.
Em maio de 1980, o
governo dos EUA, presidido por Jimmy Carter, emitiu o documento Santa
Fé I, denominado “Uma nova política interamericana para os anos 80”. E no
governo George Bush pai o documento Santa Fé II, intitulado “Uma
estratégia para a América Latina nos anos 90”.
Os signatários desses
dois documentos consideravam que “o regime democrático é aquele no qual o
governo tem a responsabilidade de preservar a sociedade vigente de ataques
externos ou da intromissão do aparato estatal permanente.” Ou seja, evitar a
influência comunista e reduzir ao máximo a intervenção do Estado na economia.
No contexto da Guerra
Fria, os documentos alertavam para a “ofensiva cultural marxista” inspirada
pelas obras de Gramsci: “Para os teóricos marxistas, o método mais promissor
para a criação de um regime estatista em um ambiente democrático se obtém
mediante a conquista da cultura da nação. De acordo com este modelo, todos os
movimentos marxistas na América Latina têm sido encabeçados por intelectuais e
estudantes, e não por trabalhadores.”
E no Documento
Santa Fé II se afirma que, nesse contexto, “deve ser entendida a
Teologia da Libertação, uma doutrina política disfarçada como crença religiosa
com uma significação antipapal e contrária à livre empresa, com o propósito de
debilitar a independência da sociedade.”
Embora a hierarquia
católica tenha apoiado o golpe militar de 1964, a repressão a militantes das
CEBs, incluindo bispos, a partir do AI-5 (1968) houve um refluxo no apoio ao
governo militar. A CNBB se distanciou gradativamente da ditadura e a atuação
progressista de novos cardeais, como Dom Aloísio Lorscheider e Dom Paulo
Evaristo Arns, identificados com o profetismo crítico dos bispos Dom Helder
Camara e Dom Pedro Casaldáliga, tornou a Igreja Católica objeto de repúdio da
ditadura, o que favoreceu o movimento das CEBs e a TdL.
O processo de abertura
política e a agonia da ditadura, em fins da década de 1970 e início da de 1980,
possibilitaram ao catolicismo progressista apoiar a fundação do PT e de
movimentos populares de âmbito nacional, como a CUT e o MST.
Na década de 1980, que
marca o fim do regime militar e a redemocratização do Brasil, a atuação
política de João Paulo II, eleito papa em 1978, se irmanou
ao reacionarismo de Ronald Reagan nos EUA e Margareth Thatcher no Reino
Unido. Isso provocou o arrefecimento das pastorais populares da Igreja Católica
e da TdL. À medida que os setores populares se viram desprovidos da presença
das CEBs, este espaço passou a ser progressivamente ocupado pelos evangélicos
da Teoria da Prosperidade. Já nas eleições de 1986, 33 deputados federais e
senadores formaram a Bancada Evangélica, enquanto os
católicos na política institucional não chegavam a se articular como
bancada. As pautas conservadoras, entretanto, aglutinavam no Congresso evangélicos,
católicos e espíritas. Criaram-se, assim, as condições para, em 2018, eleger
Bolsonaro, um político ultraconservador, católico rebatizado evangélico no rio
Jordão.
Callahan conclui seu
artigo frisando que “tudo isso implica uma realidade que qualquer liderança, de
qualquer partido, ignora por sua conta e risco: a importância da formação
política em nível de base, ensinada incansavelmente nas escolas dominicais e
por ‘intelectuais orgânicos’ comprometidos com o bem-estar daqueles que sofrem
com a barbárie do neoliberalismo atual. É hora de candidatos, campanhas e
enxurradas de propaganda política — a hora exata para educar a base cristã não
para o mal, mas para o bem. É o momento de promover formação política
progressista nas Igrejas evangélicas da periferia. Ou seja, uma formação
política comprometida com o bem-estar daqueles que vivem sem socorro, sem
segurança e sem certeza nas favelas e localidades esquecidas pelos
partidos progressistas. Ou seja, uma formação política que ensine a não perder
o coração neste mundo tão sem coração, e a nos impregnar do espírito nesta
época tão sem espírito.”
Esse desafio só será
assumido e seu objetivo alcançado se os partidos progressistas admitirem que no
povo brasileiro a porta da razão é o coração e a chave do coração, a
religião. Isso não significa abrirem mão de sua natureza laica, e sim abandonarem
qualquer conduta antirreligiosa e voltarem ao trabalho de base junto ao povo
crente. Do mesmo modo, cabe aos setores progressistas das Igrejas cristãs se
desclericalizarem e retomarem a leitura da Bíblia pela ótica dos oprimidos, na
linha do Centro de Estudos Bíblicos (CEBI), e reativarem, nos setores
populares, as CEBs.
Há um fator favorável
nesse ano eleitoral: por mais que o Cristianismo conservador ressuscite o
fantasma do comunismo e do falso moralismo (aborto, kit gay etc.), a população
mais pobre enfrenta profundas dificuldades sociais e econômicas devido ao
crescente desemprego, à alta da inflação, dos combustíveis, dos preços dos
alimentos e dos aluguéis. Somam-se a isso a precarização dos serviços de saúde,
o aumento exacerbado dos planos privados e as frequentes endemias em plena
pandemia de Covid-19. Essa contradição é o tendão de Aquiles do discurso
conservador. E, ao mesmo tempo, a brecha para que o discurso progressista dos
partidos e das Igrejas identificadas com a Teologia da Libertação resulte em
expressiva votação para candidatos antibolsonaristas.
DomTotal
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