Imagem: James Tissot
“O publicano voltou para sua
casa justificado” (Lc 18,14)
Se
algo fica patente no Evangelho deste domingo é a denúncia, por parte de Jesus,
do perfeccionismo farisaico. Fariseus de ontem e de hoje. O tão
proclamado “ideal de perfeição” chega a enraizar-se tão profundamente na vivência
religiosa que acaba produzindo consequências desastrosas para as pessoas. A
busca de perfeição torna-as rígidas, legalistas e intolerantes; seu “deus” é
pura projeção de sua rigidez e moralismo: um “deus desumano” que cobra até o
último centavo e ameaça sempre com o “inferno”.
A
Bíblia nunca nos apresenta, como modelos de fé, pessoas perfeitas e sem falhas,
mas sim, justamente pessoas marcadas pela fragilidade e fracasso e que
colocaram sua esperança unicamente em Deus, ao invocarem-no do fundo do abismo.
Jesus,
através de uma simples parábola, desmascara uma religião centrada no moralismo
e no julgamento dos outros. Nesta parábola, Jesus contrapõe os dois extremos da
sociedade judaica daquele tempo: o fariseu, expressão máxima da piedade e da moralidade, e o publicano, que por sua profissão, era a
expressão máxima do pecador, distante dos ideais religiosos.
Ambos
vão ao templo e, na oração, cada um deles revela sua vida e seus sentimentos.
De
fato, é na oração que o ser humano exprime aquilo que é mais íntimo e mostra como ele
se relaciona com os outros e com Deus. O risco do “farisaísmo” é subir o pedestal da “perfeição” e
do “legalismo”, distanciando-se do amor e da misericórdia de Deus; com isso,
cai no orgulho religioso e é incapaz de converter-se a Deus no seu íntimo.
Na
prática, a oração do fariseu significa submeter Deus a si mesmo, cobrando o
prêmio pelas boas ações. Agradece porque é sem vícios, não porque se sinta
amado por Deus. Seu louvor e agradecimento é apenas um pretexto para
louvar a si próprio, inflar o próprio ego. Ele tem méritos e nada deve a
Deus; ao contrário, Deus é quem lhe deve: a enumeração de suas boas obras
implica a pretensão de uma recompensa; ele acha que pode impressionar Deus com
suas qualidades aparentes, seus sacrifícios e boas obras puramente formais, sem
extirpar de seu coração o orgulho e o desprezo pelos outros.
A salvação que esperamos não é fruto de
nosso trabalho e penitência, de nossa prática legal e de nossas virtudes. Ela é
puro dom de Deus, divino presente de seu coração de Pai. Só nos resta
acolhê-la em atitude de humilde gratidão.
Na
sua auto-suficiência e com sua oração um tanto blasfema, o fariseu está aí, de pé, para dar
espetáculo, aguardando o aplauso da plateia. O publicano, no entanto, nos revela que
basta redescobrir o caminho da humildade (do húmus), bem no fundo de nós
mesmos: este é o lugar da oração.
Esta humildade é a porta de abertura para sair
de um coração fechado em si mesmo, de um coração auto-suficiente e
perfeccionista, onde tudo gira em torno do próprio eu, onde não há espaço para o Outro e os
outros, onde a Misericórdia não tem como agir para poder transformar a pessoa.
A
palavra latina “humilitas” está relacionada com “húmus”, com terra.
Ser “humano” é reconhecer-se terroso,
argiloso; é por essa razão que somos todos irmãos já que somos todos feitos de
argila. Somos “argila” e devemos cuidá-la, cultivá-la e fornecer-lhe as
condições para mantê-la aberta ao Transcendente. A “humildade” é a própria essência do ser
humano; ela é a própria condição para ser aquilo que se é: para ser “humano”. Essa é a verdade de nossa humanidade.
Somente
o humilde, que está preparado para abraçar seu húmus, sua
humanidade, sua fragilidade, sua sombra, experimentará o Deus verdadeiro.
Só
a aceitação de sua verdade completa conduzi-lo-á no caminho da
libertação. E a verdade é que em cada um jazem unidas a luz e a sombra. Em cada santo dorme um pecador, e não
reconhecer isso conduz ao farisaísmo e ao moralismo; mas em todo pecador dorme
também um santo, e não o perceber supõe um empobrecimento humano, desesperança
e vazio.
Numa
espiritualidade perfeccionista, o ideal é o ser humano puro, sem defeitos nem
fraquezas. Mas isso leva a um rigorismo moral, contra quem se dirige a parábola
do “publicano e do fariseu”.
Aqui
está a aparente contradição da espiritualidade cristã: nós “subimos” para Deus precisamente quando “descemos” à nossa realidade humana.
Nesse
sentido, o caminho para Deus não é visto como uma estrada de mão única que nos leva
sempre para o alto, em direção às virtudes e à perfeição. Pelo contrário, o caminho para Deus passa pela limitação
e fragilidade, pelos erros e desvios enganosos, pelo fracasso e pela decepção
consigo mesmo.
Quem
se identifica com “ideais” muito elevados, quem se exalta a si mesmo na busca da “perfeição”, mais cedo ou mais tarde terá de
confrontar-se com suas “sombras”, será forçado a tomar consciência de
sua condição humana e terrena, de seu “húmus”.
Quem “desce” até sua própria realidade, até
os abismos do inconsciente, até a escuridão de suas sombras, até a impotência
de seus próprios sonhos, quem mergulha em sua condição humana e terrena e se
reconcilia com ela, este sim, está “subindo” para Deus, faz a experiência do encontro com o Deus verdadeiro.
Na
parábola acima mencionada, os dois personagens correspondem a dois aspectos de
nossa própria pessoa. Vive em cada um de nós um eu prepotente, que se considera
justo e rejeita todo o imperfeito; é o eu rígido, fruto da super-exigência, que
se identifica com a imagem idealizada de nós mesmos e se alimenta do orgulho.
Mas junto a ele, e com frequência sufocado, vive “outro eu” que teve de esconder-se porque
não se sentiu reconhecido em sua verdade nem aceito em seus limites.
A
parábola revela-nos que a reconciliação virá por esse lado. Precisamos abraçar
toda a nossa frágil realidade, em toda a sua verdade e, a partir dessa
humildade, começar a viver em gratuidade e em gratidão.
A
parábola nos fala da necessidade de acolher o desprezível que descobrimos em
nós, de receber amorosamente em nossos braços o pobre publicano interior, de
contemplá-lo com olhos compassivos e alimentá-lo. Desse modo, iremos reduzindo
nosso abismo interior e avançaremos para a totalidade a que Deus nos chama em
Jesus.
Será
justamente a partir da consciência de nossa pobreza e de nossa negatividade que
poderemos nos abrir à experiência da gratuidade; é quando nos encontramos sem
nada que sentimos mais necessidade de nos abrir para cumular-nos dos dons da
graça divina.
Segundo
a espiritualidade que parte do “chão da vida”, ali pode estar a maior de
todas as chances, ali pode estar também nosso tesouro. É ali que entramos em contato
com nossa verdadeira essência. E é ali que alguma coisa poderá ganhar vida e
desabrochar.
Dorotéo
de Gaza disse certa vez: “Teu entulho seja teu pedagogo”.
Onde
nós caímos, onde nos afastamos de Deus, é que aprendemos uma lição, a lição que
a busca da perfeição não é capaz de nos ensinar. Justamente onde nos deparamos
com nossas fraquezas pessoais é que nos tornamos abertos para Deus. Na nossa fraqueza somos capazes de reconhecer a
Vontade que Deus tem para conosco e o que Ele poderá fazer de nós quando Ele
realizar totalmente sua graça em nós.
Deus
nos educa justamente também através de nossos fracassos, através de nossos
escombros.
“Descer” à nossa realidade, significa considerar a experiência
da impotência e do fracasso como o lugar da verdadeira oração e como chance de chegarmos a uma nova relação
pessoal com Deus.
É
decisiva a reconciliação com todas as paixões, com todas as feridas, com todas
as fragilidades..., pois todas elas podem levar-nos a Deus. Não é preciso outra
coisa senão “descer” até onde elas se encontram e interrogar o que elas têm
a nos dizer. Este é o caminho da espiritualidade que brota do húmus: descobrir novas possibilidades de
vida e de encontro com Deus.
O Amor de Deus se mistura com nosso
pobre amor, de modo que os dois se tornam um: eis o despertar do coração! Eis a verdadeira espiritualidade!
Texto bíblico: Lc 18,9-14
Na oração: Quando nos vemos demasiadamente
organizados, demasiadamente perfeitos, exigentes, rígidos, ansiosos,
agressivos..., agiríamos bem perguntando-nos o que o nosso “ego” perfeccionista
está escondendo.
- Quais são as “marcas” da perfeição impregnadas no seu interior pela formação familiar,
pela religião...
Pe.
Adroaldo Palaoro sj
Fonte:centroloyola.org.br
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