• Fé não
se explica, transcende a razão, ultrapassa todo raciocínio lógico | Pixabay
Uma
das características do fanatismo ou fundamentalismo é exatamente a supressão
simbólica ou real do adversário.
Nesse
mundo de pós-verdade, toda mentira é palatável. Sem o menor constrangimento,
chefes de Estado defendem que a Terra é plana e vacinas contêm chips chineses
capazes de violar a intimidade dos vacinados...
Essa
necropolítica dinamita toda a coerência lógica, desqualifica a consistência dos
argumentos, ignora provas científicas e introduz a irracionalidade ao deslocar
o conhecimento da cabeça para o coração. O que se sente passa a ter mais
importância do que aquilo que se pensa. A intuição se sobrepõe à inteligência.
O afeto, ao pensamento.
Tal
postura produz antinomias: diante da atitude violenta de um adversário tenho
vontade de matá-lo; frente a quem ridiculariza minha fé religiosa, sinto ganas
de queimá-lo vivo; aceito a diversidade desde que as bandeiras que defendo
tenham hegemonia...
Sou
ágil em criticar e denunciar as incongruências do outro, mas incapaz de
autocrítica quando me equivoco. Não me dou conta de quanto o egocentrismo
impregna minha subjetividade. Frente aos erros dos adversários reajo com
intolerância. Mas diante dos erros de meus correligionários busco amenizar os
fatos, botar panos quentes, suavizar as críticas. Porque também em mim o
coração fala mais alto que a cabeça.
Assim,
a era da pós-verdade é como casa em que não há pão, todos brigam e ninguém tem
razão.
O
exemplo mais flagrante dessa irracionalidade é o discurso político de que a
política não merece credibilidade, os políticos são todos corruptos, as funções
políticas devem ser ocupadas por militares e empresários “que não são políticos”...
Eis a subversão da semântica.
Essa
prevalência do afeto sobre a razão induz ao fanatismo. Veja o show de um astro
da música, como é retratado no filme sobre a carreira de Elvis Presley,
dirigido por Baz Luhrmann. As pessoas, inebriadas pelo artista, entram em
transe; impregnadas do magnetismo que ele provoca, perdem a compostura, se
levantam, aplaudem em delírio, tentam tocá-lo, soltam gritos onomatopaicos, e alguns até desfalecem.
Quando
se trata de um líder político, transformado em mito por seus admiradores, estes
ficam totalmente desprovidos de senso crítico. Não agem pela razão, agem pela
emoção. Por isso nenhum argumento os faz mudar de postura. Ficam todos reféns
daquela figura que acolhem como um avatar caído dos céus. É o salvador, o messias,
o grande guia.
Essa
relação de total submissão só encontra analogia na experiência religiosa. As
pessoas não querem saber se o mito é ou não competente ou corrupto. Têm fé
nele. E fé não se explica, transcende a razão, ultrapassa todo raciocínio lógico.
E assegura ao mito, da parte dos adeptos, coesão e fidelidade, ainda que ele
profira disparates e diga coisas absurdas e inconvenientes. Ainda que mate.
Pode-se não saber a razão, mas ele, sim, terá suas razões para agir como age...
Aliás,
uma das características do fanatismo ou fundamentalismo é exatamente a
supressão simbólica ou real do adversário. Não basta criticá-lo. É preciso
eliminá-lo, extirpá-lo, exorcizá-lo da vida social, pois é considerado
demoníaco.
No
exercício do voto, é a emotividade que conduz a decisão de quem venera o mito.
Inútil querer demovê-lo por argumentos racionais. Ele está mobilizado por uma
espécie de hipnose coletiva e nada é capaz de despertá-lo desse transe.
É a
naturalização do ódio em todas as suas manifestações – racismo, misoginia,
homofobia etc. Naturalização que legitima, aos olhos dos que se submetem à
“servidão voluntária”, todas as afrontas, injúrias e mentiras proferidas pelo
líder como mera “liberdade de expressão”...
Mas
além da naturalização de preconceitos e discriminações, além da “banalização do
mal”, o que consolida o mito é a sua sacralização. Vide os faraós do Egito. Não
contavam com exército suficiente para conter uma possível revolta da multidão
de escravos. Mas haviam interiorizado no povo que o faraó era a encarnação do
deus Rá. Essa divinização do poderoso, cuja palavra era voz de deus, revestia o
Estado de caráter teocrático. Qualquer sublevação tinha duplo peso: de
subversão e grave pecado.
Vide
as manifestações de massa do Terceiro Reich. Eram todas litúrgicas! Quanto mais
a política se acoberta sob o manto da religião, tanto mais impregna a
subjetividade daqueles que, de adeptos, se transformam em fiéis dispostos a
qualquer sacrifício para que o líder reine.
Mas,
de que vale adorar o Pai para quem padece da falta de pão? Eis aqui o calcanhar
de Aquiles do mito. Seus partidários não se alimentam de palavras e promessas.
E o flanco vulnerável dos fanáticos consiste exatamente em levá-los – já que
abdicaram da razão – a dar um passo para abaixo do coração e, assim, se
deslocarem da emoção e chegarem lá onde o instinto de sobrevivência fala mais
alto: o estômago, as condições materiais de existência. Ao abrir os olhos
diante da mesa vazia, a voz da razão soa altissonante.
Daí
a importância do trabalho político ser preferencialmente de base, centrado nas
classes populares, cujas precárias condições de vida favorecem a consciência
crítica. Discursos do mito não enchem panelas. Resta-nos tirar Paulo Freire das estantes e levá-lo de novo à
prática.
Fonte: domtotal
Pura verdade
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