terça-feira, 11 de outubro de 2022

QUANDO OS BISPOS SE REBELARAM CONTRA A CÚRIA ROMANA

Bastidores do Vaticano II, inaugurado há 60 anos

Manuel Pinto | 10 Out 2022
Os bispos reunidos no II Concílio do Vaticano, na Basílica de São Pedro. Foto: Direitos reservados.

Completam-se esta terça-feira, 11 de outubro, 60 anos sobre a pomposa cerimónia de abertura que deu início àquele que, pelo seu impacto, é talvez o maior acontecimento da Igreja Católica no século XX: o Concílio Vaticano II (1962-1965).

A cerimónia inaugural, presidida pelo Papa João XXIII, o autor da iniciativa, revela a fase de transição que o catolicismo vivia, num tempo efervescente de tensões (a crise dos mísseis de Cuba, que pôs o mundo perante a iminência de uma guerra nuclear, eclodiria uns dias depois de iniciados os trabalhos conciliares).

Naquele dia 11 de outubro, uma quinta-feira, tinha chovido durante a noite, mas o dia acordou ensolarado. Para trás estavam três anos de preparação, desde que o “bom Papa João” anunciara a uns atónitos cardeais a ideia de convocar um concílio, em 1959. A procissão de centenas e centenas de bispos de todo o mundo serpenteava pela Praça de S. Pedro, perante milhares de fiéis presentes e milhões de outros assistindo pela televisão em direto (apenas na Europa).

Além dos bispos, encontravam-se representantes de outras igrejas, de movimentos e de dezenas de governos de diferentes partes do planeta. A acompanhar muitos dos bispos (não foi o caso dos que lá estiveram de Portugal), encontravam-se também dezenas de “peritos”, na sua maioria teólogos, que assessoravam e aconselhavam os chamados “padres conciliares”.

Um deles, o padre e teólogo dominicano francês Yves Congar (1904-1995), dá-nos o privilégio de ter deixado um Diário do Concílio, onde os dias que antecederam a abertura e o próprio 11 de outubro de 1962 aparecem amplamente documentados. Ficamos, assim, a saber que, do ponto de vista da logística, as coisas estavam relativamente bem preparadas. Mas isso já não acontecia quanto a aspetos como a obtenção dos cartões de acreditação ou à distribuição de documentos, mesmo aos bispos participantes. A horas da sessão inaugural, muitos observadores não tinham lugares atribuídos na Basílica de S. Pedro e, entre os cerca de 700 jornalistas acreditados para a cobertura, ninguém aparecia para falar com eles.

No dia, as coisas lá se compuseram. Yves Congar ficou posicionado numa galeria que poderia vir a ser ocupada por observadores, caso necessário. Quando o cortejo vindo do exterior transpôs a entrada do templo, os que com ele partilhavam o espaço acotovelaram-se e chegaram-se à frente para ver o espetáculo das capas e das mitras e para ver o Papa. Congar ficou remetido para as traseiras, sem sequer ter visto João XXIII.


“Profetas da desgraça” nada aprendem com a história

João XXIII: os “profetas da desgraça” estavam sempre a anunciar acontecimentos terríveis, “como se estivesse iminente o fim do mundo”. Foto: Direitos reservados.

O Papa fez então o discurso de abertura da primeira das quatro sessões pelas quais se iria prolongar o Concílio. Observou que não estava em causa mexer na doutrina, mas aprofundá-la e expô-la “de forma a responder às exigências do nosso tempo”, numa perspetiva “prevalentemente pastoral”. A Igreja, acrescentou, “julga satisfazer melhor às necessidades de hoje mostrando a validez da sua doutrina do que renovando condenações”.

Dirigindo-se àqueles que no interior da Igreja se opõem à necessidade de aggiornamento (atualização), considerou-os “profetas da desgraça”, sempre a anunciar acontecimentos terríveis, “como se estivesse iminente o fim do mundo”. Nos tempos atuais, tais pessoas “não veem senão prevaricação e ruínas” e “vão repetindo que a nossa época, em comparação com as épocas passadas, foi piorando”, nada tendo aprendido “da história, que é também mestra da vida”.

Quem já não escutou estas palavras do Papa João foi Yves Congar: remetido ao seu canto, foi-se apercebendo de que a liturgia a que estava a assistir pouco mais era do que um espetáculo, em que nem sequer havia verdadeiramente liturgia da Palavra. Mesmo sabendo que, uns minutos depois, a Bíblia haveria de ser entronizada para ficar a presidir a todos os trabalhos conciliares, desabafa, mais tarde, no diário: “Não aguentei mais. Depois da epístola, deixei a tribuna. Fui superado por aquela configuração senhorial renascentista”, onde até os clérigos o que queriam era “ver” o que se estava a passar.

Refletindo, já depois de chegar a casa, sobre o que tinha vivido, Congar refletia:

“A Igreja inteira estava ali, encarnada nos seus pastores. Mas lamento que tenha sido empregado um estilo de celebração tão alheio à realidade das coisas. O que teria sido se aquelas 2.500 vozes tivessem cantado juntas pelo menos o Credo, senão mesmo todos os cânticos da missa, em vez daquele canto elegante de profissionais pagos?”. Dessa frustrada experiência de arranque, escreveu ter ficado “com um desejo imensamente mais forte” de ser uma pessoa plenamente dedicada ao evangelho e trabalhar para que do Concílio saísse “um estado de coisas em que o que falta hoje se torne realidade”.

Primeira decisão, primeira derrota para a Cúria
Yves Congar: era preciso fazer “algo diferente e melhor do que foi preparado: algo pastoral, menos escolástico”. Foto: Direitos reservados.

Conta ainda Congar que, ao terminar a cerimónia inaugural, cada um dos bispos recebeu uma pasta com os papéis de votação para eleger 16 bispos para cada uma das dez comissões estabelecidas nos trabalhos preparatórios; um livrinho com uma lista completa e atualizada dos bispos da Igreja; e, finalmente, uma lista para cada comissão, em formato de boletim de voto, dos bispos que já eram membros das várias comissões preparatórias e que, eram, em grande medida, elementos da Cúria Romana.

Procurando sempre os equilíbrios possíveis, sem renunciar àquilo em que acreditava, Congar reconhecia como positiva a continuidade de alguns membros da fase preparatória do Concílio. Mas percebeu bem que, ao ser sugerido que os membros da Cúria fossem eleitos automaticamente, estava-se a colocar o trabalho das comissões sob o controlo da máquina do Vaticano. Por isso entendia que era desejável, na nova fase, fazer “algo diferente e melhor do que foi preparado: algo pastoral, menos escolástico”.

Quase todos os bispos com quem o teólogo tinha falado por aqueles dias lhe tinham confessado considerar os esquemas dogmáticos da fase preparatória “muito académicos e filosóficos”. Congar explica: “Basicamente, a escolástica penetrou no governo da Cúria Romana. As comissões preparatórias refletiam esse estado de coisas”, até porque eram… compostas por professores dos colégios romanos. “Mas a escolástica dificilmente tem lugar no governo pastoral das dioceses, e são estas que agora têm a palavra”.

De resto, os historiadores do Vaticano II reconhecem que as expectativas na Cúria apontavam para uma duração relativamente breve do Concílio. Bispos dos Estados Unidos da América teriam vindo já com poucas expectativas acerca dos trabalhos, contando ficar umas semanas em Roma e, depois, regressar a casa.

Fosse como fosse, quando os trabalhos propriamente ditos se iniciaram, na manhã do dia 13 de outubro de 1962, e o secretário pediu que os padres conciliares procedessem à votação dos membros das comissões, o cardeal Achille Liénart, bispo de Lille (França), pediu a palavra e, argumentando que os bispos não se conheciam suficientemente para fazer tais escolhas, solicitou o adiamento da votação por alguns dias. A proposta foi, de imediato, secundada pelo cardeal Gabriel-Marie Garrone (arcebispo de Toulouse que, sabe-se hoje, tinha sido o autor da ideia). Depois de alguns momentos de espera, veio a decisão de aceitar a proposta.

Comentando o que se passou, Congar é claro: “A principal importância reside no facto de este ter sido o primeiro ato conciliar” e ter sido também “uma recusa de aceitar até mesmo a possibilidade de uma pré-fabricação” do resultado.

Uma decisão desta natureza, contrariando o programado pela Cúria, foi a primeira, mas não foi a última. “O Espírito sopra onde quer”.

Obras consultadas:
Yves Congar, O.P. (2012) My Journal of the Council. Adelaide: ATF Press (original: Éd. du Cerf, 2002)
Ralph M. Witgen, S.D.V. (2014) The Inside Story of the Vatican II. Charlotte, N.C.: Tan Books

Fonte: Setemargens

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