Filme do mineiro Marcos Pimentel é um dos mais importantes do ano

• Cineasta Marcos Pimentel em premiação no Festival do Rio | Divulgação/Festival do Rio
Alexis Parrot*
Religião e guerra sempre andaram de mãos dadas, isso nunca foi novidade para ninguém. Ao longo da história, muito sangue se derramou em nome de Deus, segundo a conveniência daqueles que detinham o poder. Fé e Fúria, mais recente filme do premiado documentarista Marcos Pimentel, chega em bom momento para mostrar novas encarnações deste antigo embate.
Já nos primeiros segundos de projeção, ouvimos a conversa cheia de referências religiosas entre funcionários do tráfico vigiando o acesso a uma favela. Mais que uma introdução, o diálogo estabelece o delicado terreno por onde se embrenhará o filme, descortinando as ligações perigosas entre fé e crime e escancarando as contradições das seitas evangélicas neopentecostais no país, além do discurso de ódio e intolerância disseminado por elas.
Filmado entre 2016 e 2018, no momento crucial da ascensão de Bolsonaro ao poder, parece emblemático que apenas agora o filme tenha sido lançado. O desmonte das políticas públicas culturais operado pela gestão do mito foi mais pernicioso para o setor audiovisual do que o próprio advento da pandemia do coronavírus. No momento em que já se anuncia o término desta lamentável presidência e após uma eleição que promete reconduzir a dignidade ao Palácio do Planalto, Fé e Fúria mostra que Lula terá trabalho redobrado na busca pela pacificação do país.
Por meio de depoimentos, o filme destrincha o processo sistemático e covarde que vem demonizando durante anos as religiões de matriz africana e aqueles que as praticam, principalmente no seio das comunidades populares e mais carentes. Cada vez mais recorrentes, os ataques e depredações a barracões e terreiros são a parte mais visível de uma violência injustificada, mas quase institucionalizada.
Para um dos pastores entrevistados, só de entrar em um terreiro, é possível sentir um "clima pesado", "porque lá mexe com as treva, mexe com as coisas do mal". A frase ressoa certo pensamento difundido como verdade pelas elites e camufla o racismo arraigado em nossa sociedade - como defende com propriedade Cosme, outro dos pastores ouvidos pelo filme: para essa gente, "tudo que é de preto é ruim".
É Cosme ainda que abre o caminho para a grande questão do documentário, ao diferenciar pentecostais de neopentecostais, estes últimos tributários de uma teologia da prosperidade, "ligada ao capitalismo e ao dinheiro, em que o momento da oferta e do dízimo é a parte principal do culto". No Brasil, é a Universal do Reino de Deus de Edir 'nada a perder' Macedo a responsável maior por este modelo de neoliberalização da religião, gerando (e justificando) todo o preconceito e racismo inerentes ao capitalismo e ao espectro político da direita e extrema direita.
Entra em cena, então, o terceiro fator da equação bem urdida pelo filme: o tráfico. Contrariando a tradição histórica de respeitar o culto religioso nas comunidades que dominam, seus líderes estariam se associando às pequenas (e grandes?) denominações evangélicas para expurgar os terreiros de sua área de dominação. Há um elemento claro de cooptação e conversão religiosa, mas também a denúncia sustentada por entrevistados do filme de que haveria um acerto financeiro entre as duas partes, envolvendo lavagem de dinheiro.
Remetendo à organização do crime na época da ditadura, quando presos comuns passaram a conviver (e a aprender) com prisioneiros políticos do regime militar nas penitenciárias, os traficantes começaram a se colocar a serviço dos pastores neopentecostais a partir da infiltração deste setor no sistema prisional. E a manutenção desta "nova ordem" nas favelas e comunidades se dá também pela forte presença e atuação de policiais evangélicos guiados por preceitos (ditos) religiosos na polícia militar, especialmente no estado do Rio de Janeiro.
A fúria a que se refere o título do filme aponta para verdadeiros crimes cometidos em nome da fé e de uma ideologização da religião, se aproveitando da ignorância de incautos e defendendo interesses financeiros que fariam corar aqueles vendilhões que Jesus expulsou do templo.
Mas como expulsá-los novamente, se agora eles constroem seus próprios templos? Para que uma portinha de garagem de um dia para o outro seja autoproclamada como igreja, basta ter um CNPJ válido e em dia. Vestir um terno comprado no crediário em doze vezes sem juros pode ser o suficiente para qualquer um se dizer pastor, ainda que sem nenhuma formação teológica. Entre estes, mesmo aqueles imbuídos de fervor verdadeiro acabam engrossando mais as fileiras do microempreendedorismo do que os rebanhos do Senhor.
Como de hábito em sua obra, Pimentel parte do mínimo e do pessoal para refletir sobre a conjuntura macro e grandes temas caros à experiência humana. Trata seus personagens e assuntos como o artista que cultiva um bonsai: paciente e meticuloso, vai dando forma a um discurso lírico e sofisticado, mas sobretudo direto em seu significado político. Seus filmes, geralmente reveladores, logram ultrapassar a mera surpresa para adentrar o território do espanto.
Apesar de amplo, o filme é apenas a ponta - não do iceberg, mas de todo um Monte Ararat afundado no dilúvio da exploração religiosa. É preciso que líderes neopentecostais sejam finalmente responsabilizados pela sedição e pelo estrago que vêm causando ao país há décadas.
Entretanto, em meio a tantos depoimentos de pastores e evangélicos, pais, mães e filhos de santo, chama atenção a ausência de qualquer representante da fé católica. Onde estão os católicos nesta guerra? Esta lacuna é mais uma questão que o filme nos joga na cara, igualmente merecedora de reflexão (ou mea culpa).
O documentário pode ser assistido lado a lado com Notícias de uma Guerra Particular, filme essencial de 1999, dirigido por João Moreira Sales. Enquanto Sales denunciava o Estado e a polícia, Pimentel acrescenta agora a religião como força mantenedora do crime e da violência entre a população desassistida do país. Sem medo de expor as chagas abertas do país, Fé e Fúria promove um retrato sem retoques do Brasil bolsonarista que não tem vergonha de se assumir preconceituoso e intolerante. Pela denúncia que apresenta e pela reflexão que exige, é um dos filmes mais importantes do ano.
DomTotal
*Alexis Parrot é crítico, roteirista e jornalista.
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