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“Felizes os pobres em
espírito, os mansos, os pacíficos, os misericordiosos, os puros de coração...”
Todo
ser humano anseia por felicidade; como filhos e filhas do “Sopro criativo”, somos
habitados por uma “fome e sede” de eternidade, de infinita liberdade, de vida
plena...
Muitas
são as pistas sobre o lugar onde se encontra a “chave da
felicidade”.
Alguns o situam na arte; outros, numa religião fundamentalista; muitos, num
consumo desordenado; vários, na política alienada; tantos, no sucesso a todo
custo; poucos, na militância comprometida; inúmeros, no trabalho estressante;
raros, no serviço desinteressado...
A
sociedade de consumo que tudo invade, realça a felicidade como a meta imediata
de nossas buscas, algo ao qual temos direito e que depende de fatores externos.
Esta felicidade é passageira, pois quando a alcançamos, invade de novo a
insatisfação, a inquietude, o ressentimento, a inveja... e de novo
empreen-demos nossa busca.
A felicidade não se encontra na saída e nem
no final. Parodiando Guimarães Rosa, podemos dizer que ela está presente na
travessia.
Nesse
sentido, felicidade pode ser entendida como um “estado de
espírito”; é
experimentar uma sensação de renascimento contínuo, de satisfação interior...
ou sentir despertar em si um potencial de bondade, muitas vezes desconhecida...
A
felicidade não vem a nós a partir de fora, nem nos espera no futuro; tampouco
se encontra em “algo” que deveríamos alcançar. A felicidade se identifica com o
que somos;é outro nome de nossa identidade profunda e transcende toda
circunstância e acontecimentos.
Muitas
vezes somos ignorantes de nosso estado de felicidade; na essência, já somos
felicidade. O problema é que nos identificamos com o que não somos e, nessa
mesma medida, nos afastamos da felicidade quando a localizamos em “algo” ou a
projetamos “fora”. Mas a felicidade não é um “estado de ânimo” que pode variar,
mas um “estado de ser”, que nasce justamente da experiência profunda de nossa
vida e que é capaz de abraçar todos os estados de ânimo.
A
verdadeira felicidade coincide com a paz interior; é o prazer de descobrir a cada
dia que a vida se inicia novamente a cada amanhecer; é fazer da mesma vida uma
grande aventura...
As bem-aventuranças, pronunciadas por Jesus sobre um
monte, tem o caráter de uma teofania e constituem umas das páginas mais belas
da sabedoria universal. Falam de uma felicidade diferente que abre
caminho em meio às adversidades e contradições. Cada frase é uma passagem, uma
páscoa, onde chega ao auge o que parece contraditório: bem-aventurados são os que sofrem, os pobres,
os persegui-dos, os humildes, os que choram... pois demonstram que eles ainda
não perderam a sensibilidade, que eles sentem o mundo como injusto e que, por
isso, são, verdadeiramente, os únicos a sonharem, a buscarem e a lutarem por um
novo mundo.
Tanto
as bem-aventuranças como o Reino são trans-confessionais. São atitudes que
aproximam todos os seres humanos. Seu caráter universal é o que faz com que
muitas vezes sejam lidas em encontros inter-religiosos. Elas nos convocam a ir
além de nossos pequenos e atrofiados lugares, em direção a uma terra prometida
da qual já falavam os profetas de Israel.
Para
surpresa de todos, Jesus subiu a uma montanha para ver o amplo horizonte da
vida e lá fez um profundo mergulho em seu interior, estimulando também os
discípulos e a multidão a descerem no insondável mundo do “eu profundo”. É ali
que se encontra a fonte das inspiradas “beatitudes”, aquelas que tecem nossa
vida e nos fazem originais.
Não
há outro modo de alcançar o divino a não ser “escavar” e fazer emergir aquilo
que é mais nobre e humano, escondido nas profundezas da vida. Para ativar as
bem-aventuras é preciso perfurar a dura casca do ego inflado e prepotente.
Nas
afirmações surpreendentes de Jesus, são chamados de bem-aventurados ou felizes
aqueles que vivem em sentido contrário ao que o mundo propõe: pobreza,
mansidão, paz, compaixão, sensibilidade solidária.
A
felicidade evangélica não é como aquela que o mundo vende, ou seja, euforia
fácil e prazer imediato. Ela é muito mais um chamado à plenitude e sabe
suportar os embates que a vida apresenta. Com frequência, associamos a
felicidade à ausência de problemas, ao êxito econômico, à beleza perene ou ao
prazer em todas as suas dimensões. No entanto, tudo isso esgota ou é
simplesmente insustentável, pois não tem consistência interior.
Não
podemos considerar as bem-aventuranças como leis ou como algo a cumprir. Elas são o horizonte,
a meta, o tesouro a descobrir. Devemos nos aproximar de cada uma delas como
“atributos divinos” presentes em nosso interior e no interior de todas as
pessoas. Elas são como estradas através das quais avançamos até viver na
“dinâmica do Reino”, que tantas vezes encontra resistência frente a outras
dinâmi-cas egóicas e formas de viver auto-centradas que nós mesmos alimentamos.
-
Ao escutar e acolher que somos felizes quando somos “pobres de
espírito”, significa
ter alcançado a liberdade interior, ser conscientes de onde colocamos a
segurança de nossa vida. Mas também implica viver uma existência simples e
despojada, sentindo-nos chamados a partilhar os dons e a nossa própria vida com
os mais necessitados.
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Quando Jesus proclama que devemos ser “mansos, para possuir a terra” percebemos a radical diferença
frente ao orgulho e prepotência cultivados pela nossa sociedade. A mansidão é
fruto do Espírito, próprio de quem deposita toda sua confiança em Deus. Se
vivemos tensos, agressivos diante dos outros, acabamos cansados e esgotados.
Mas, quando olhamos nossos limites e fragilidades com ternura e mansidão, sem
nos sentir superiores ou inferiores a ninguém, podemos viver mais integrados,
evitando desgastar energias em lamentos ou dissimulações inúteis.
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Ao escutar que somos felizes quando “sabemos chorar com os outros”, significa compartilhar o
sofrimento alheio e enfrentar as situações dolorosas, solidarizando-nos com o
sofrimento do mundo para transformá-lo.
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E continuamos escutando que somos felizes, bem-aventurados, quando sentimos “fome e sede
de justiça”, ou seja, quando emerge de nosso
interior um impulso mobilizador para que a vida digna seja possível para todos
e sentimos isso como se sente a fome, a partir das entranhas.
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Quando somos “misericordiosos”, significa que deixamos fluir de nosso coração o amor
recebido de Deus, significa que estamos acolhendo os outros incondicionalmente,
assim como nos sentimos acolhidos por eles.
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Ao nos descobrir que somos felizes quando temos “um coração
limpo para poder ver a Deus”, significa ter um coração simples, sem falsidade,
autêntico, transparente.
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E nos admiramos, nestes tempos tão sombrios, ao escutar que somos felizes
quando “trabalhamos pela paz” sem excluir ninguém; construímos paz quando buscamos o consenso, a
harmonia, o perdão, a possibilidade de vida para todos.
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Mais ainda, no final nos é dito que somos felizes quando nos sentimos “perseguidos
por causa da justiça”, porque o Reino de Deus pede uma
sociedade justa e em paz e isto não é possível sem uma grande dose de entrega
pessoal para contrapor todos os obstáculos que nascem dos interesses pessoais e
dos egoísmos grupais, retardando a plenitude do Reino.
Texto bíblico: Mt 5,1-11
Na oração: “Contemplar” o significado de
cada bem-aventurança; verificar em que medida e em que circunstância ela
se faz visível em sua vida.
Pe.
Adroaldo Palaoro sj
Fonte: Centroloyola.ogr.br
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