quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

"AS PESSOAS SÃO VIOLADAS E ASSASSINADAS, ENQUANTO OS NEGÓCIOS QUE PROVOCAM MORTE CONTINUAM A PROSPERAR


Emelda Di Bugobe contou ao Papa ter sido mantida como escrava sexual e abusada durante três meses. “Fizeram-nos comer farinha de milho com a carne dos mortos”, disse. Foto reproduzida a partir do Twitter @#PapeEnRdc.

“Bunia, Beni-Butembo, Goma, Masisi, Rutshuru, Bukavu, Uvira… são lugares que os meios de comunicação internacionais quase nunca mencionam”, mas que Francisco fez questão de nomear na tarde desta quarta-feira, 1 de fevereiro. Fê-lo durante um encontro que decorreu na nunciatura de Kinshasa, com vítimas de violência oriundas precisamente de alguns desses locais do leste da República Democrática do Congo, região que tem sido alvo de atrocidades por parte de grupos armados. Depois de escutar os seus testemunhos dramáticos, confessou que não é fácil encontrar palavras. Mas não deixou de denunciar “a exploração sangrenta e ilegal da riqueza” do país, principal responsável por essa violência.

O primeiro a ter a coragem de falar foi Ladislas Kombi, de 17 anos. Visivelmente comovido, o adolescente contou que o seu irmão mais velho foi morto “em circunstâncias ainda hoje desconhecidas”. Mais tarde, também o seu pai foi assassinado, e Ladislas assistiu a tudo. “O meu pai foi morto na minha presença, em Ingwe, em direção a Kikungu, território de Beni, por homens com calças de treino e camisas do exército. Do meu esconderijo, vi como eles o cortaram aos pedaços, depois a sua cabeça decepada foi colocada num cesto. Por fim, levaram a minha mãe. Raptaram-na. Ficámos órfãos, eu e minhas duas irmãzinhas. Até hoje, a minha mãe nunca mais voltou. Não sabemos o que lhe fizeram”, relatou.

Essas memórias não o abandonam e não o deixam dormir à noite, partilhou ainda Ladislas reconhecendo que “é difícil entender tamanha maldade, tanta brutalidade quase animal”.

Outro dos testemunhos veio de uma jovem mãe que carregava uma bebé no colo e outra na capulana: Bijoux Kamala, de Goma, contou como durante o trajeto até ao rio mais próximo de casa para ir buscar água foi sequestrada, juntamente com outras raparigas. “Cada um dos rebeldes escolheu quem ele queria. O comandante quis-me a mim e violou-me como um animal. Foi um sofrimento atroz. Permaneci praticamente como sua mulher. Ele violou-me várias vezes ao dia, sempre que queria, a várias horas”. Bijoux diz ter tido “a sorte de escapar com uma amiga, após 19 meses de sofrimento.” Estava grávida. “Tive duas meninas gémeas, que nunca conhecerão o pai. As outras amigas que foram raptadas comigo naquele dia nunca mais voltaram. Não sei se estão mortas ou se ainda estão vivas”, referiu.

Também Emelda Di Bugobe contou ao Papa ter sido mantida como escrava sexual e abusada durante três meses. “Todos os dias, cinco a dez homens abusavam de cada uma de nós. Fizeram-nos comer farinha de milho com a carne dos mortos. Às vezes eles misturavam cabeças de pessoas com carne de animais. Este costumava ser o nosso alimento diário. Aquelas que se recusaram a comê-lo foram cortadas em pedaços e outras foram forçadas a comê-lo”, relatou.

“Fica-se chocado e resta-nos chorar”
As vítimas de violência que aceitaram participar neste encontro e dar o seu testemunho foram depositando aos pés da cruz alguns objetos relacionados com o sofrimento que viveram. Foto © Vatican Media.



Junto ao Papa, tinha sido colocada uma cruz e foi diante dela que estas e outras vítimas de violência que aceitaram participar neste encontro e dar o seu testemunho foram depositando objetos relacionados com o sofrimento que viveram: catanas, machados, esteiras, lanças…

“Aqui está a esteira, um símbolo da minha miséria como mulher violada. Coloco-a sob a cruz de Cristo, para que Cristo me perdoe pelas condenações que fiz no meu coração contra estes homens. Que a cruz de Cristo me perdoe a mim e aos meus violadores e os leve a desistir de infligir sofrimento desnecessário às pessoas. Esta é também uma lança igual à que usaram para perfurar os seios de muitas das nossas irmãs. Que Deus nos perdoe a todos e nos ensine a respeitar a vida humana”, disse Bijoux.

Já Emelda colocou junto à cruz algumas fardas de homens armados, como as usadas por aqueles que a violaram, e disse querer um futuro diferente. “Queremos deixar este passado sombrio para trás e poder construir um belo futuro. Pedimos justiça e paz. Perdoamos aos nossos carrascos por tudo o que fizeram e pedimos ao Senhor a graça de uma convivência pacífica, humana e fraterna. Obrigada, santo Padre, por ter vindo”, disse.

Francisco, visivelmente abalado com tudo o que acabara de ouvir e ver, também agradeceu. “Obrigado pela coragem destes testemunhos”, começou por dizer. “Perante a violência desumana que vocês viram com os vossos olhos e experimentaram na própria pele, fica-se chocado e resta-nos chorar, sem palavras, permanecendo em silêncio”, afirmou.

Depois, condenou “as violências das armas, os massacres, as violações, a destruição e ocupação de aldeias, a pilhagem de campos e de gado que continuam a ser perpetrados” na República Democrática do Congo. “Que escândalo, que hipocrisia: as pessoas são violadas e assassinadas, enquanto os negócios que provocam violências e mortes continuam a prosperar…”, lamentou o Papa.

“Enche de indignação saber que a insegurança, a violência e a guerra, que tragicamente atingem tantas pessoas, são vergonhosamente alimentadas não só por forças externas, mas também de dentro, para daí tirarem proveito e vantagem”, sublinhou Francisco, pedindo a Deus para que converta “os corações de quem pratica tão cruéis atrocidades, que envergonham toda a humanidade”.

Renovando a apelo que já fizera na missa celebrada durante a manhã, neste encontro o Papa dirigiu-se “a todas as pessoas, a todas as entidades, internas e externas, que movem os cordelinhos da guerra na República Democrática do Congo, saqueando-a, flagelando-a e desestabilizando-a: basta! Basta de enriquecer com a pele dos mais frágeis, basta de enriquecer com recursos e dinheiro manchados de sangue”, pediu.

Às vítimas de violência, assegurou: “As vossas lágrimas são as minhas lágrimas, a vossa dor é a minha dor. A cada família enlutada ou desalojada por causa de aldeias incendiadas e outros crimes de guerra, aos sobreviventes das violências sexuais, a cada criança e adulto ferido, digo: estou convosco, quero trazer-vos a carícia de Deus”.

A julgar pelas palavras das vítimas de violência que com ele estiveram neste encontro, levou mesmo. “Santíssimo Padre, agradecemos-lhe ter vindo consolar-nos”, disse Ladislas. “A vossa presença, Santidade, dá-nos a certeza de que toda a Igreja cuida de nós”, afirmou Bijoux. E Emelda confirmou: “Está a deixar-nos um legado, um presente de amor através desta sua proximidade”. 

SeteMargens

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