“E a água que eu lhe der
se tornará nele uma fonte de água que jorra para a vida eterna” (Jo 4,14)
Nestes
próximos três domingos da Quaresma a liturgia nos apresenta três grandes
relatos do evangelho de João: a samaritana, o cego de nascimento e a
revivificação de Lázaro.
A
expressão “Eu sou”, característico do quarto evangelho, se encontra nestas
três cenas: “eu sou a Água viva”, “eu sou a Luz”, “eu sou a Vida”. São
imagens-símbolo que des-velam e nos ajudam a compreender a verdadeira
identidade de Jesus; ao mesmo tempo, são imagens que também revelam nossa
identidade. É no encontro destas duas identidades que se fundamenta o sentido
profundo do seguimento de Jesus.
A
Quaresma se apresenta como momento oportuno para enraizar nossa vida n’Aquele
que “morreu de tanto viver”; afinal, somos seguidores de uma Pessoa e não de
uma religião, de uma doutrina... Seguir Jesus implica tornar visível em nossa
vida o modo de ser e viver d’Aquele que foi o “biófilo”: amigo da vida.
O
relato deste domingo – encontro de Jesus com a samaritana – é uma verdadeira catequese,
que nos convi-da ao seguimento d’Aquele que é a Fonte da Vida. Nem no templo,
nem em Jerusalém, nem em nenhum outro lugar se pode viver o verdadeiro culto,
que se revela como encontro e identificação com Jesus.
Muitas
vezes, o que entendemos por prestar culto é apenas idolatria: a tentativa de
domesticar e manipular Deus segundo os nossos interesses.
Uma
mulher da Samaria chega a um poço para tirar água, alheia a tudo o que ali a
espera e distraída na trivialidade de sua vida cotidiana que não se abre ao
imprevisível: vai só buscar água com o cântaro vazio para retornar à sua casa
com ele cheio. Não há mais expectativas, nem mais planos, nem mais desejos.
Mas
o imprevisível está lhe esperando na pessoa daquele galileu sentado na beira do
poço e que inicia uma conversação com ela sobre coisas banais, talvez para não
a assustar: falam de água e de sede, de poços e de velhas rixas entre os povos
vizinhos, coisas de todos os dias. Repentinamente, irrompe a linguagem “das
coisas do alto”, o dom, uma água que se converte em manancial vivo, a promessa
de uma sede pacificada para sempre, um Deus em busca do ser humano, fora dos
espaços estreitos de templos e santuários.
E,
no final da cena, o cântaro que era símbolo da pequena capacidade que está
disposta a oferecer, fica esquecido junto ao poço, agora já inútil pois não
pode conter uma água viva.
A
sede da samaritana – e a de Jesus – é a mesma sede de todo ser humano: é
insatisfação radical que não pode ser saciada por nada humano. A sede
representa as necessidades e aspirações fundamentais do ser humano: sede de
sentido e de plenitude, sede de comunhão e de encontro, sede de vida...
Somos pessoas-sede!
A
sede é uma água que nos habita e nos dá vida. A sede é fundamental, essencial.
O nosso coração é um «interminável reservatório de sede. Sede de amor. Sede de
verdade. Sede de reconhecimento. Sede de razões de viver. Sede de um refúgio.
Sede de novas palavras e de novas formas. Sede de justiça. Sede de humanidade
autêntica. Sede de infinito» (José Tolentino Mendonça, Elogio da Sede).
Como
um bom pedagogo, Jesus acompanha a samaritana a descobrir o desejo de água
fresca, a saudade humana de amor e felicidade.
Em
termos orantes, o ser humano, todos nós, temos “sede do Deus
vivo” (Sl
42,3), que brota de nossa terra ressequida, rachada, sem água: suspiramos como
a corça suspira pelas torrentes de água, por Deus. Só o Senhor nos conduz para
as fontes tranquilas (Sl 22).
Neste
precioso e profundo relato do evangelho de João são tantos os temas que o autor
vai alinhavando, a partir de diferentes níveis (histórico, simbólico,
espiritual), que se torna impossível aprofundá-los em um breve comentário. A
imagem da sede remete à nossa aspiração profunda, incapaz de ser saciada por
nenhum objeto. A imagem da água, por sua vez, nos remete à nossa identidade original, que está
brotando constante-mente em nosso interior.
Jesus
aparece como o mestre que nos liberta de enganos e de falsas identificações,
para que possamos entrar em contato com a “água viva” que Ele mesmo já
saboreia, a única que torna possível “nunca mais ter sede”.
Essa
água não é “algo” – algum objeto que possa nos preencher – nem se encontra
longe de nós. Constitui nosso núcleo mais profundo. O que normalmente acontece
é que – como a samaritana – estamos longe dela. Ao viver “fora” de nós,
desconectados da fonte, nos acontece aquilo que S. Agostinho lamentava:
“Tarde te amei, beleza sempre antiga e sempre nova, tarde
te amei! No entanto, Tu estavas dentro de mim e era eu quem estava fora”.
O
importante é saber que a “beleza sempre antiga e sempre nova” não é “algo” (ou “alguém”)
separado de nós, embora possamos nos dirigir a ela em chave relacional,
nomeando-a como um “Tú”.
É
outro nome da “água” de que falava Jesus, e constitui nossa identidade última,
aquela na qual nos reconhecemos quando nossa mente se silencia; aquela que
saboreamos quando, simplesmente, nos deixamos ser; aquela que está sempre a
salvo e que, para além das aparências mentais, partilhamos com todos os seres.
O
encontro com Jesus move a samaritana e, nos convida também, a descobrir o
manancial de água viva que flui em nossas entranhas em lugar de continuar sendo
buscadores de “poços no deserto”.
Jesus
espera a samaritana, como espera cada um de nós, ali onde está a trama de nossa
vida. Ele inicia sempre o encontro pedindo-nos daquilo que já recebemos, do que
já temos... Junto a Sicar ou ao lado de nossos próprios poços... Não é preciso
percorrer um caminho diferente, não pede a ela, nem a nós, ir a nenhum templo, nem
lugar sagrado; nossa própria vida, com as circunstâncias nas quais vivemos, é o
lugar em que Jesus se faz presente. Às vezes o escutamos e outras nem sequer o
vemos.
Ali
nos pede, como à samaritana, que entremos no mais íntimo de nós mesmos, que
desçamos ao nosso próprio centro, à nossa realidade profunda, que estejamos
atentos à nossa própria fonte e à fonte dos outros. O encontro com Jesus não
acontece na superfície de nossa vida, no banal ou impessoal, nas aparências ou
falsas imagens que tantas vezes alimentamos. A presença d’Ele des-vela (tira o
véu) nosso manancial, muitas vezes bloqueado por uma cultura da exterioridade
que nos resseca e torna estéril nossa vida.
Em
nosso percurso existencial encontramos, muitas vezes, pessoas que são
verdadeiras nascentes. São límpidas e transparentes, inspiradoras e
mobilizadora, habitualmente delicadas. Estar na presença delas é saciar nossa
sede, saímos renovados. São pessoas-fonte que despertam em nós o desejo de
acessar nosso manancial interior de desejos, criatividade e busca... É ali, na
fonte interior, que a vida se renova.
Outras
vezes nos encontramos com pessoas que são verdadeiros lençóis de
água. Subterrâneas,
circulam debaixo da terra, discretas, silenciosas, mas surpreendentemente
criativas. Trabalham no silêncio e fazem mover a engrenagem do mundo com seus
gestos escondidos, simples, mas eficazes; suas presenças fazem a diferença. Sem
elas não seria possível a vida.
É
certo que também há as pessoas pântano, pessoas charco, pessoas “águas paradas”
ou águas poluídas, pessoas “enxurrada” que tudo destroem. Claramente, nem todas
as águas são boas!
Bebemos
de muitas águas e partilhamos muitas fontes. Talvez em nós convivam agora, e em
diversas fases da vida, muitas destas águas. A água é dinâmica, viva. Como nós.
Não somos estáticos, mas vamos no expandindo ao longo da vida, regando
ambientes secos e áridos. Às vezes pensamos que só quando estivermos saciados
poderemos saciar, ou só quando formos água boa poderemos matar sedes. No
entanto, em nós convivem miséria e grandeza, força e fragilidade, estagnação e
movimento, água boa e água pior. Simultaneamente, somos água e somos sede. E o
encontro destas duas realidades constitui nossa verdadeira identidade.
Tentar
só guardar a nossa água ou permanecer fechados na nossa sede faz-nos definhar e
morrer. Sondar as nossas águas e oferecer as nossas sedes é caminho comum de
vida e redenção.
Afinal,
Jesus fez-se sede para nos redimir.
Texto bíblico: Jo 4,5-42
Na oração: Somos seres insaciáveis, insatisfeitos; vivemos
eternamente buscando, sem saber o quê. Em contato com o “poço
infinito” (nosso
interior), sentimos a necessidade de preenchê-lo a qualquer preço; na maioria
das vezes, preenchemo-lo com “coisas”: busca de poder, posses,
prestígio... e sentimo-nos frustrados, porque nada nos satisfaz.
Precisamos ativar outras “sedes”.
-
Dê nomes às suas “sedes existenciais” que o(a) mantém criativo(a),
buscador(a)...
-
Escave seu interior e verifique a “qualidade” da água que brota do seu
manancial?
Pe.
Adroaldo Palaoro sj
Fonte:centroloyola.org.br
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