“O seu rosto brilhou como
o sol e as suas roupas ficaram brancas como a luz...” (Mt 17,2)
O
evangelho deste segundo domingo da Quaresma nos apresenta um acontecimento
muito profundo e transcendente da vida de Jesus, na presença de seus
discípulos. O contexto desta passagem é a subida de Jesus a Jerusalém, antes de
sua morte. O Mestre leva consigo três discípulos com os quais já tivera
dificuldades devido à falta de compreensão deles com relação à sua missão.
Pedro tentara desviar Jesus de seu caminho de Cruz e os outros dois, João e
Tiago, disputavam os primeiros lugares no Reino. Jesus deseja revelar a eles, e
a nós, que há uma dimensão muito mais profunda neste seguimento e que o impulso
egóico deve se esvaziar diante da transcendência de uma vida que se faz
entrega.
Ali,
no Monte Tabor, também aparecem dois personagens que são referenciais na tradição
judaica: Elias e Moisés. Elias é aquele que lhes revela que a Divindade é uma
presença única como brisa suave e que se comunica como sussurro interior no
mais profundo do ser humano, algo inesgotável. Moisés, em outra dimensão,
revela que a Divindade atua na história como ação libertadora de toda
opressão.
Na transfiguração, Jesus vai além destes dois
personagens e revela que não é um profeta eleito para nos ensinar quem é e como
é Deus; Ele mesmo deixa transparecer sua divindade e revela que toda a
humanidade é chamada a visibilizar a presença divina em cada um. Deus é Luz que envolve a realidade humana na
pessoa de Jesus, e é Palavra dirigida agora aos discípulos para lhes comunicar que Ele é o Filho
Amado.
Já
vimos no Batismo que essa voz foi dirigida somente a Jesus; mas a revelação
continua avançando e essa Voz agora é dirigida aos discípulos e a cada um de
nós. Na verdade, todos(as) somos “filhos e filhas amados(as)”; todos somos um pequeno “sol”, conectados com o Grande
Sol que tudo ilumina. Somos criaturas profundamente amadas, para além de nossos
medos e inseguranças, para além das imagens que temos ou que outros têm de nós.
A nossa condição humana se “transfigura” na “filiação divina”: aqui está a
nobreza e a grandeza de cada um de nós.
A
Transfiguração de Jesus nos mobiliza a ultrapassar a superficialidade da
realidade e nos impulsiona a ir além das aparências: é a profundidade de um
rosto, de um acontecimento ou de um ato que pode chegar a transfigurar nossas
vidas. É questão de ativar um novo olhar que vai se aprofundando, um
olhar contemplativo que que vai além do imediato e faz captar o sentido de tudo
e de todos; um olhar que nos revela nossa verdade mais profunda; um olhar que
percebe a luz escondida em meio às sombras da vida.
É
o olhar de um amor não condicionado que transfigura nossa vida e irrompe em
nosso corpo e em nossos olhos em forma de uma luz suave e intensa que nos
impacta.
Esse
é o olhar verdadeiro sobre nossas vidas, aquele que desperta as fontes de amor
adormecidas em nós.
Esse
é o olhar que nos pacifica, elimina toda inquietação e nos faz dizer com Pedro: “Senhor, é bom
estarmos aqui”.
A Transfiguração de Jesus põe em evidência nossa
condição humana; de um lado, ela deixa transparecer que, como humanos, somos
frágeis e vulneráveis, carentes de necessidades, e que buscamos nos apegar
àquilo que nos promete segurança; no entanto, de outro lado, ela manifesta que,
na nossa essência, somos partícipes da Luz divina, plenitude de presença, em profunda unidade com tudo e
com todos.
O
“relato das tentações” de domingo passado nos situou frente à nossa condição de
vulnerabilidade e carências (busca de poder, prestígio, riqueza...); o “relato
da transfiguração” deste domingo desvela (tira o véu) a luminosidade que somos. Ambos os relatos
revelam nossa natureza contraditória: somos Plenitude que se expressa na
vulnerabilidade, somos luzes e sombras, seres enraizados, mas abertos ao
horizonte, carregados de “bem-aventuranças” e de “mal-aventuranças, vida que se
expande e vida que se retrai...
A
sabedoria cristã integra estes dois polos de nossa vida: o absoluto e o
temporal, o oculto e o manifesto, a identidade e o ego inflado, interioridade e
exterioridade... É do encontro dos polos contrários que brota a energia, a
criatividade, o espírito de busca...
O
tempo quaresmal, inspirado pela pessoa de Jesus Cristo, nos faz “descer” ao
chão de nossa vida e nos colocar diante da nossa realidade contraditória: justa
e injusta, pacífica e violenta, amorosa e odiosa, sincera e falsa, fiel e infiel...
É preciso ser sábio o bastante para crescer na consciência da nossa identidade
profunda e não ficarmos presos e fechados na ignorância sobre aquilo que
“somos”. Na essência, somos “luz” e, no entanto, vivemos perdidos nas sombras
da culpa, preocupação, competição, ativismo, perfeccionismo...
É
preciso avançar na compreensão e na consciência do que pensamos, do que
sentimos, do que fazemos, do que vemos e ouvimos... a partir do nosso ser
profundo. E isso é luminosidade, transparência, trans-figu-ração, plenitude de
presença. Na realidade, isso que somos não tem, e nem pode ter, um nome
adequado, porque escapa e vai além do sentido das palavras. Dizia José Saramago
que “em nós há algo que não tem nome. Esse algo é o que somos”. Isso que somos só pode ser percebido
quando calamos nossa mente, nossas concepções estreitas, nossas visões
atrofiadas... O monte da transfiguração nos desafia a contemplar nossa
interioridade sem o filtro dos pre-conceitos, ideias, percepções...
Celebrar
a “transfiguração de Jesus” é despertar nosso ser, nossa essência, nossa
originalidade... No encontro com o Jesus transfigurado, também nos transfiguramos.
Já somos “seres transfigurados” e não sabíamos disso. A transfiguração não é
algo externo, uma mudança de disfarces como no carnaval, mas significa uma
abertura à realidade cotidiana e tomar consciência de que a vida e a história
estão cheias de sentido. A realidade torna-se “diáfana” (transparência) e nos
impulsiona a ir além da pura materialidade.
A
transfiguração é mistério de mão dupla: por um lado, nos “diviniza” ao revelar
que somos “filhos(as) amados(as); por outro, nos “humaniza”, pois nada do que é
humano é descartado; todas as dimensões que compõem nosso ser (corpo, razão,
afetividade, coração, memória, vontade, relações...) são perpassadas pela
realidade divina que nos habita. Somos seres de transcendência e de
enraizamento.
Assim,
a transfiguração não é um evento que acontece num determinado momento
especial, mas um “modo de ser e de viver” na realidade cotidiana; só quem tem
sensibilidade contemplativa pode perceber e entrar no fluxo da transformação,
sendo presença transfigurada e iluminante.
Um
entardecer, um encontro com alguém, uma ação oblativa, uma oração... podem
transfigurar nosso ser, nossa existência para a verdade, a bondade e a beleza.
Há
pessoas petrificadas por dentro que tudo o que tocam, ou o ambiente em que
vivem, se transforma em sombra pesada: a vida familiar, comunitária, política,
trabalho, ambiente eclesial... Outras, pelo contrário, transfiguram a vida e os
problemas, desafios, cuja presença proporcionam um clima de paz; há quem
transforma a vida, a enfermidade, os desafios em paz e serenidade. Há quem
transfigura a guerra em paz, o ódio em respeito e amor, a enfermidade em fonte
de aceitação da própria finitude, o desespero em esperança... Há pessoas que
bloqueiam a ação da luz presente em seu interior; há outras que, tal como um
vitral, deixam a luz divina atravessar sua vida e transmitem a luz da bondade,
da proximidade, da compaixão...
Enfim,
viver é transfigurar a existência, iluminá-la, transcendê-la...
Texto bíblico: Mt 17, 1-9
Na oração: Quem crê se torna luz, reflexo da Luz de Jesus transfigurado.
A
vida inspirada pela fé é um “caminhar na Luz”. Somos portadores da “luz
nova”; não
extinguir essa luz que queima dentro. Abafar essa luz é menosprezar a vida da Graça,
o tesouro que nos foi confiado no batismo.
Devemos
guardá-la ciosamente, velar por ela, valorizá-la pela nossa colaboração,
estimá-la e protegê-la, como a chama olímpica que nos levará à vitória.
-
Sou pessoa que transfigura a realidade da vida? Deixo transparecer a luz da
bondade, do amor, da compaixão que habita em mim? Sou presença “radiante” que
tudo desvela, ilumina...?
Pe.
Adroaldo Palaoro sj
Fonte:centroloyola.org.br
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