“Eu sou a porta. Quem
entrar por mim, será salvo; entrará e sairá e encontrará pastagem” (Jo 10,9)
A
liturgia deste quarto domingo de Páscoa nos traz, em primeiro lugar, a imagem
de Jesus-Pastor que conduz e guarda, anima e protege aqueles(as) que o
seguem; a segunda imagem pascal é a “porta da liberdade” pela qual saem e entram as ovelhas, ou seja, todos nós,
sem que ninguém nos persiga nem domine. O próprio Cristo Ressuscitado é a porta
da liberdade.
A
terceira imagem refere-se a todos nós, transformados pelo Ressuscitado em
pastores e porta de liberdade em um mundo onde impera a escravidão da
violência, da indiferença e do ódio.
“Eu sou a porta”: Jesus não se refere à peça de madeira ou ferro que gira
para abrir ou fechar o curral das ovelhas, mas o espaço por onde se pode ter
acesso ao recinto. Por isso, Jesus afirma que é a porta das ovelhas, não do
redil. “Passar por Ele” é “entrar” na Vida, é deixar-se revestir pelo seu modo
de ser e viver. Todos os que vieram antes são ladrões ou bandidos porque não
facilitaram a liberdade e a vida às ovelhas.
Entrar
pela porta que é Jesus é o mesmo que “aproximar-se dele”, “identificar-se com
Ele”, “aderir a Ele”; isso implica assemelhar-se a Ele, ou seja, caminhar com
Ele na busca do bem das pessoas. Ele dá a vida definitiva, e aquele que possui
essa Vida ficará a salvo da exploração. Ele é a alternativa à ordem injusta.
Em
Jesus, o ser humano pode alcançar a verdadeira salvação. “Poderá entrar
e sair”, ou seja,
terá liberdade de movimento. “Encontrará pastagem” é o mesmo que dizer: “não passará fome nem sede”.
O
Bom Pastor inaugura um movimento de vida; Ele não vem fundar novas
instituições que travam a liberdade das pessoas, nem vem trazer novas leis que
se tornam peso nas costas dos seus seguidores. Seu jugo é suave e seu peso é
leve (cf Mt 11,30). Por isso Ele se define como “Porta da
Vida” que
está sempre aberta. Por ela temos acesso ao seu coração carregado de bondade e
compaixão.
Aqueles
que escutam sua voz deixam o ambiente opressor e vivem em liberdade. Jesus não
vem substituir uma instituição por outra; não tira as ovelhas de um curral para
prendê-las em outro.
“Entrar” e “sair” pela porta: aí está a experiência de viver a vida ressuscitada em
toda a sua plenitude e de “saborear” a existência em toda a sua
promessa.
A porta é uma realidade e é um símbolo.
“Entrar” e “sair” pela Porta que é o próprio Cristo Ressuscitado, desata em nós
a consciência de sermos “portas abertas em nossa
interioridade”. Passar pela “Porta” do Ressuscitado é destravar a porta de nossa
interioridade para que a vida possa se expandir e receber novos ares; passar
pela “Porta” do Vivente é ter acesso à nossa verdadeira identidade.
Quando
a experiência de encontro com Aquele que é a “Porta da Vida” abre a porta de
nosso redil interior, ela faz emergir à nossa consciência as profundidades
desconhecidas do
nosso ser, reacende nossa vida e libera em nós as melhores possibilidades,
recursos, capacidades, intuições…; ao mesmo tempo nos faz descobrir em nós, nossa verdade mais profunda de pessoas
amadas, únicas, sagradas, responsáveis... Assim, de portas abertas, nossa
vida se expande em direção aos outros e à Criação, possibilitando uma conexão
livre com toda a realidade, através da íntima solidariedade e do compromisso
ativo.
No
atual contexto social e religioso tudo contribui para vivermos a cultura das
“portas fechadas” que exclu-em, dividem, marginalizam...; isso provoca a
contaminação de nosso coração: ódio, intolerância, indiferença, preconceito...
Muitos de nós continuamos presos dentro de um medo neurótico, sem atrever-nos a
ser o que somos, sem abrir a porta do coração de nossa vida.
Frente
à realidade que insiste para que fechemos as portas, construamos muros, o
evangelho deste domingo nos inspira a viver uma atitude de permanente abertura,
de não ter medo frente à nova vida que nos chega através do Ressuscitado. Ele
vem para abrir as portas, enviar-nos ao mundo com uma palavra de perdão, com um
testemunho de vida, com uma presença libertadora...
Segundo
a tradição bíblica, o que mais nos desumaniza é viver com um “coração
fechado” e
endurecido, um “coração de pedra”, incapaz de amar e de crer. Quem vive “fechado em si
mesmo”, não
pode acolher o Espírito de Deus, não pode deixar-se guiar pelo Espírito de
Jesus.
Quando
nosso coração está “fechado”, nossos olhos não veem, nossos ouvidos não ouvem,
nossos braços e pés se atrofiam e não se movimentam em direção ao outro;
passamos a viver voltados sobre nós mesmos, insensíveis à admiração e à ação de
graças. Quando nosso coração está “fechado”, em nossa vida já não há mais
compaixão e passamos a viver indiferentes à violência e injustiça que destroem
a felicidade de tantas pessoas. Vivemos separados da vida, desconectados. Uma
fronteira invisível nos separa do Espírito de Deus que tudo dinamiza e inspira; é impossível
sentir a vida como Jesus sentia.
Em
meio às mudanças e às transformações de nosso tempo, somos chamados, como
seguidores(as) do Bom Pastor, a ser pessoas de interioridade. E interioridade é um caminho sempre inacabado.
Frente
aos desafios que a vida hoje nos apresenta, é decisivo favorecer um espaço
interior livre, ou
seja, liberado de tudo aquilo que possa entorpecê-lo inutilmente, para “sentir e
saborear as coisas interna-mente” (S. Inácio). Não é possível “ajudar os outros” a viver
interiormente se nós mesmos não vivemos nesse redil de silêncio, de gratuidade
e de interioridade, onde buscamos as motivações e as inspirações de nossa
missão (família, trabalho, relações...). Sem buscar e encontrar os caminhos da interioridade corremos o risco de secar nossa
generosidade cotidiana e de atrofiar o sentido de nossa existência e dos nossos
mais fortes compromissos.
Para
reavivar a graça pascal precisamos:
-
“Ser” a porta da caridade e da misericórdia, revelando-nos agentes
transmissores da bondade e da ternura de Deus; ser porta e mantê-la sempre
aberta, mesmo que entrem fortes ventos ou pessoas inesperadas;
-
“Ser” a porta para o novo, o diferente, superando toda suspeita, preconceito e
medo; porta de passagem que nos possibilite compartilhar e aprender com todos
os homens e mulheres de boa vontade para assumir os desafios mais cruciantes da
humanidade de hoje;
-
“Ser” porta aberta aos pobres e excluídos, reforçando a simplicidade como modo
de vida e a solidariedade como proposta ousada;
-
“Ser” a porta do encontro que é a chave de nossa cultura; que passemos e
ajudemos a passar da chave da indiferença e da distância à chave da proximidade
e do encontro;
-
“Ser” a porta da comunicação direta, simples, inclusiva, transparente, próxima
e fraterna.
-
“Ser” a porta para denunciar a desigualdade social e econômica que produz tanta
dor e tantas vítimas;
-
“Ser” a porta que nos leve a um compromisso com a ecologia, o meio ambiente e o
cuidado da natureza.
“Eis que estou à porta e bato; se alguém ouvir minha voz e abrir
a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele e ele comigo” (Apoc. 3,20). O convite é todo feito
de ternura, de desejo e de liberdade, introdu-zindo-nos num movimento interior.
Como
sempre, é Deus quem toma a iniciativa. O Espírito procura entrar para fecundar,
recolocar em ordem, restaurar, unificar.
A
experiência de “entrar” e “sair” da porta da interioridade é mobiliza-ção para “entrar” e “sair” com leveza alegre em cada
circunstância da vida, para viver cada momento de maneira inspirada e
ressuscitada.
Texto bíblico: Jo 10,1-10
Na oração: todos nós podemos e devemos ser pastores e porta de liberdade
para os outros. Que saibamos discernir, diante de tantas portas que temos
atrás de nós, junto a nós e diante de nós, qual deve ser nosso proceder. As
portas não se abrem e nem se fecham sozinhas; é preciso uma chave e ela está em
nossas mãos. Cabe a cada um decidir: que a casa do nosso coração seja a casa da
humanidade.
Pe.
Adroaldo Palaoro sj
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