“Quando se sentou à mesa
com eles, tomou o pão, abençoou-o, partiu-o e lhes distribuía” (Lc 24,30)
Todos
temos experiência que o passado carrega lembranças de fatos e de vivências negativas: crises,
fracassos, decepções, rejeições, erros, pecados... Os desencontros, quebras e
rupturas... costumam deixar feridas. Tudo isso pesa na memória e continua influenciando
negativamente no presente.
Com
isso, ela se torna “memória mórbida, doentia”: depósito de rancores,
ressentimentos, hostilidades...; ao se fixar no passado, a “memória mórbida”
alimenta remorsos, sentimentos de culpa, desânimo, angústia..., embotando a
vida, queimando energias, paralisando a pessoa e não abrindo futuro de sentido.
Pessoa
doente na memória é doente no seu coração, na sua afetividade, nos seus
sentimentos...
Se
a memória não é “evangelizada”, ela continua remoendo aquilo que aconteceu, num
desgaste muito grande de energia. Não há mudança e conversão se não houver
mudança e conversão da memória.
Somente
através da “memória redentora”, a pessoa será capaz de se colocar diante do passado, de
modo livre e aberto, dando-lhe um novo significado.
A memória sadia não muda o passado, mas “recorda”
(visita com o coração) de modo novo e inspirador. A memória resgata referências, cura
feridas, reconcilia-se com a vida e consigo mesma, com as próprias riquezas e
fraquezas, com o próprio passado; ela tem sua função de lugar santo do louvor e
da gratidão, pois ajuda a tomar consciência dos benefícios recebidos e
possibilita ter acesso às recordações não neutras, mas aquelas que tem um
significado para o presente. Ela é capaz de tirar proveito de todas as
vivências pessoais (nada é descartado, tudo é integrado); abre possibilidade
para rever a própria história e lê-la como História de Salvação.
A
cena do encontro de Jesus Ressuscitado no caminho de Emaús nos revela um longo diálogo amigável, que certamente ficou
marcado na memória dos dois discípulos que fugiam de Jerusalém, após o evento
da Paixão. Tudo o que havia acontecido com Jesus continuava presente na memória
e no coração dos dois discípulos. Conversavam sobre o que significou para eles o encontro com Jesus, a convivência com
Ele, o fascínio exercido sobre eles pelo anúncio do Evangelho e pela esperança
da libertação de Israel.
Conversavam
e discutiam também sobre a crucifixão e a morte de Jesus.
No
fundo do coração dos discípulos havia um grande vazio que, inconscientemente,
queriam preencher “conversando”. Estavam confusos e desorientados, mas não se separaram; não
conseguiam entender-se, mas continuavam a caminhar lado a lado e a conversar; uma conversa carregada de tristeza, sem sentido, um diálogo
de fracassados que não levava a lugar nenhum.
Foi
justamente no meio desta “conversação”, triste e sem esperança, que o
Ressuscitado se fez presente.
O Forasteiro, ao juntar-se a eles no caminho,
ajudou-os a recontar a história, gentil e gradualmente. Partindo dos relatos bíblicos o
Ressuscitado foi aquecendo o coração dos dois discípulos para que eles pudessem
re-interpretar e ressignificar os fatos que tinham “acontecido em Jerusalém”
até surgir uma nova perspectiva. Lentamente, eles foram fazendo a “travessia”
de uma memória pesada, triste, doentia... a uma memória saudável, curativa e
aberta ao futuro.
As viagens que fazemos em direção à
reconciliação com nosso passado, muitas vezes se parecem com a viagem dos discípulos de
Emaús. Na maioria das vezes, procuramos fugir da dor do passado e não sabemos
para onde nos dirigimos. A viagem torna-se tediosa e pesada, marcada pelo fracasso e carregada de
culpa, pois parece que não chegamos a lugar algum, embora nos movimentemos o
tempo todo. É como estar preso a um moinho que nos mantém em movimento, mas não
nos faz sair do lugar.
Re-ler
o passado à luz de um horizonte maior de sentido é altamente
libertador; novos recursos internos são mobilizados e a vida começa se
movimentar, saindo do “fatal ponto morto”. As lembranças e os pesadelos dos relatos
traumáticos sempre reaparecem e, apesar da passagem do tempo, permanecem tão
nítidos e incontroláveis. No entanto, é preciso iluminá-los e situá-los no
contexto dos relatos da História da Salvação. Só assim tudo adquire novo
sentido, a história pessoal deixa de ser inimiga que alimenta culpa e torna-se
companheira de estrada.
Quando
alcançamos uma nova perspectiva sobre determinada experiência traumática ou
frustrante, a esperança e o entusiasmo por viver vem habitar nosso
interior. Trata-se de um momento tão fortalecedor e jubiloso que estremecemos
reverentes diante do que vemos.
A
narrativa de Emaús é um dos melhores exemplos de como podemos colocar nossas histórias dentro da História maior da paixão, morte e ressurreição
de Jesus. “A Páscoa ocorre quando encontramos em Jesus não um amigo morto,
mas um forasteiro vivo” (Rowan William)
Na
narrativa de Emaús, o Forasteiro cria um círculo de amor em que os discípulos
contam sua história em segurança e começam a reconstruir a confiança. Foi
criado um ambiente de hospitalidade e acolhida.
Nesse
círculo, a memória manifesta-se paulatinamente e revela suas feridas; lentamente,
acontece uma “passagem” da memória mórbida à memória redentora.
A
experiência do encontro com o Senhor e de seu reconhecimento transforma
radicalmente a vida dos dois discípulos. O itinerário da fé pascal é longo e penoso, mas realiza
uma verdadeira reviravolta nos pensamentos e sentimentos, nos ideais e na
conduta daqueles que o percorrem até o fim.
Por
meio da benção e do ato de partir e compartilhar o pão, os discípulos fazem a ligação com o
passado.
Chega
o momento do reconhecimento, e eles se transformam. Cheios de estímulo e
esperança, e também de um novo propósito, apressam-se a voltar para Jerusalém a
fim de partilhar a nova descoberta.
Que
representa para nós a experiência de Emaús?
É
na estrada que essa história começa a se desenrolar. O nó do problema não é a
situação de fracasso de Jesus, como os discípulos pensam; o que está
verdadeiramente em foco é a situação deles. Não é Jesus que desaparecera, eles
é que ainda não conseguem vê-Lo e reconhecê-Lo, prisioneiros de uma tristeza e
de uma cegueira tal que os impediam de aceitar a condição pascal de Jesus.
Também eles precisam passar pela experiência de ressurreição, pois permanecem
enfaixados no túmulo do passado e do fracasso.
Os
dois discípulos vêem Jesus, mas não o reconhecem, porque a visão deles é,
ainda, a pré-pascal. Foi preciso despertar a “memória redentora”, ativada pelo
próprio Jesus, para que a experiência de intimidade fosse construída na
Estrada, na escuta da Palavra, no convite a entrar em Casa e no ato de
sentar-se à Mesa, onde acontece a benção e a fração do pão.
O
relato deste domingo não fornece pormenores sobre a casa nem nos garante que ela seja a
de um dos discípulos. Contudo o convite “fica conosco” destaca um elevado grau
de aproximação. Jesus deixa de ser um forasteiro. O convite a que permaneça com
eles traduz um desejo de relação e hospitalidade.
As casas, em Lucas, são territórios onde
Jesus desenvolve preferencialmente o seu ministério sobre o anúncio do Reino. A
casa chega mesmo a representar uma alternativa ao Templo, e a tudo o que ele
simboliza.
O
centro das casas, no Evangelho, é a mesa; também aqui o movimento de Jesus vai nessa direção: “sentou-se à
mesa com eles”. Aquele
que era o forasteiro agora é o anfitrião; Aquele que estava morto convida a
partilhar a sua vida.
Texto bíblico: Lc 24,13-35
Na oração: O Tempo Pascal é uma escola de “leitura orante da nossa história”, pois nos ajuda a abrir os olhos para
a sua novidade inesgotável, faz “arder o coração”, desperta o desejo e mobiliza
todas as nossas capacidades para um compromisso de ação na história pessoal e
coletiva.
“Há feridas que em vez de abrir nossa pele, abrem nossos olhos” (Pablo Neruda). A memória desempenha aqui um papel
essencial. Quando evangelizada, é a que permite abrir as portas e pôr em
movimento os dinamismos de vida, muitas vezes reprimidos pelas crises, feridas
e fracassos.
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Na estrada de sua vida, o que tem predominado: “memória doentia” ou “memória
agradecida”?
Pe.
Adroaldo Palaoro sj
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