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James Tissot
“Vendo Jesus as multidões,
compadeceu-se delas...” (Mt 9,36)
O
atributo primeiro do Deus de Jesus não é o poder, a majestade, o senhorio...,
mas a compaixão. Ele não vem para impor-se e dominar o ser humano.
Aproxima-se para tornar nossa vida mais digna e ditosa.
Esta
é a experiência que Jesus comunica em suas parábolas mais comovedoras e a que
inspira toda sua trajetória a serviço do Reino de Deus. De fato, na sua vida
pública, Jesus deixa transparecer o rosto do Pai compassivo na sua relação com
a humanidade, sobretudo com os sofredores, vítimas de violência e exclusão. A
imagem do Deus revelado por Ele não está acima ou à margem do sofrimento
humano.
Jesus
é a primeira testemunha da compaixão do Pai; Ele foi o primeiro a viver
totalmente a partir deste sentimento tão divino e tão humano, desafiando
claramente o sistema de santidade e pureza que predominava naquela sociedade.
Ele quer que, a partir de então, os enfermos, os famintos, os excluídos...,
experimentem em sua própria vida a compaixão de Deus.
A
atuação de Jesus era diferente das autoridades religiosas, pois Ele via tudo a
partir da compaixão de Deus. O que lhe preocupava, antes de mais nada, era o
sofrimento que destruía, humilhava e marginalizava tantas pessoas. Jesus não
caminhava pela Galiléia buscando pecadores para convertê-los de seus pecados,
mas aproximava-se dos enfermos, famintos e endemoninhados para libertá-los de
seu sofrimento.
É
precisamente esta compaixão de Deus que faz Jesus tão sensível ao sofrimento e à
humilhação das pessoas, que o atrai para as vítimas inocentes: os maltratados
pela vida ou pelas injustiças dos poderosos.
Sua
paixão pelo Deus do Reino se traduz em compaixão pelo ser humano. O Deus do
templo, o Deus da lei e da ordem, do culto e do sábado, não poderia alimentar
sua entrega a todos os sofredores.
Por
isso, a compaixão, é a opção e atitude fundamental de Jesus diante dos
sofredores, famintos e excluídos. Diante deles, Ele não permanece
impassível, mas sente remover suas entranhas. A palavra hebraica que se
traduz por compaixão é “rahamim”, derivada de “rahem”, ventre,
entranhas.
Na
antropologia bíblica, ventre é o lugar da compaixão e é aplicado a Deus, pois
só Ele é capaz de atuar compassivamente a partir de suas entranhas. A tradição
bíblica do Êxodo apresenta Javé movido pela compaixão diante dos sofrimentos do
povo hebreu; Ele escuta os gritos que chegam ao céu e compromete-se com a
libertação da escravidão do Egito (Ex 3,7-12).
A
compaixão também está na base da legislação hebraica que defende os direitos
dos órfãos, das viúvas e dos estrangeiros, os mais vulneráveis entre o povo. É
o centro da mensagem e a prática dos profetas de Israel, para quem a religião
verdadeira não consiste em oferecer sacrifícios, mas em fazer o bem,
estabelecer o direito e praticar a justiça. A compaixão expressa,
portanto, uma reação visceral, o estremecimento mais íntimo e humana que uma
pessoa pode experimentar. Nesse sentido, a compaixão é o motor da vida e da conduta
do ser humano.
A
partir de sua experiência radical da compaixão, Jesus introduz na história um
princípio decisivo de ação: “Sede compassivos como vosso Pai é compassivo” (Lc 6,36). A compaixão é a
força que pode mover a história para um futuro mais humano. A compaixão ativa e
solidária é a grande lei da dinâmica do Reino, aquela que faz reagir diante do
clamor daqueles que sofrem e mobiliza a todos para construir um mundo mais
justo e fraterno. Esta é a grande herança que os cristãos precisam mantê-la
sempre ativa. Afinal, eles são seguidores do Compassivo.
A compaixão é a virtude por excelência
proclamada no Sermão da Montanha: “Bem-aventurados os compassivos...”. Felicidade e compaixão são inseparáveis. Uma pessoa é
feliz partilhando e aliviando a dor das pessoas que sofrem. A falta de
entranhas de misericórdia torna infelizes aqueles que não praticam tal virtude
e aqueles que sofrem. Por isso, pode-se dizer que se trata de um princípio
ético universal, que
transcende todas as culturas e religiões, de maneira que, precisamente por
isso, está presente onde há humanidade. A compaixão é comum a todos e é anterior a
toda instituição religiosa. Ela está inscrita no mais profundo de todo ser
humano, independentemente de sua opção religiosa.
Fomos
criados à imagem e semelhança do Deus Compassivo e trazemos “tatuado” em nossas entranhas a marca da
compaixão, que é continuamente ativada diante dos dramas da vida humana. Este
sentimento, tão humano e tão divino, constitui a essência do nosso “eu”
verdadeiro e revelador da nossa identidade mais original e profunda. No
entanto, quando nos deixamos seduzir pelo “ego inflado”, a compaixão se atrofia,
a sensibilidade se petrifica, os afetos se esvaziam... Consequências:
agravamento da cultura do ódio, da intolerância, do preconceito e da
indiferença frente à realidade marcada pela violência, miséria e exploração.
Compaixão
bloqueada dá margem ao processo de desumanização. O eu entrincheirado em
seu “bunker” necessita passar por um processo de higiene e saúde, respirar
novos ares, não viciados ou contaminados; precisa abrir suas portas e janelas
ao outro, sair às ruas, fazer-se presente junto às situações desumanizadoras.
Viver
fechado em si e para si termina por afogar-se nas águas poluídas do narcisismo.
Só a compaixão vem a ser o melhor antídoto contra o egoísmo tão enraizado no
ser humano. Impulsionado pelo sentimento da compaixão ele quebra as paredes de
seu “bunker”, sai ao encontro do outro e se compromete com ele. Escreve E.
Levinás: “a partir do momento em que o outro me olha, eu sou responsável
por ele”.
No
evangelho deste domingo, Mateus nos deixa claro que foi no contexto da compaixão de Jesus diante da multidão
faminta e sem pastor que o “chamado e o envio” acontecem. O chamado de Jesus
emerge no calor da compaixão; só este sentimento tão nobre dará inspiração e
sentido ao seu seguimento.
Sem
deixar-se guiar pela compaixão, o seguimento de Jesus “passa pelo outro lado”
diante do sofrimento humano e se torna cúmplice dele. A alternativa é o
seguimento como vivência do amor, da justiça e do cuidado, que faz sua a dor
das vítimas; um seguimento carregado de compaixão, que denuncia os geradores de
vítimas e toma partido pelas pessoas, os coletivos e a natureza, sofredores que
gritam aos céus.
Seguir
Jesus sem compaixão é ser “burocrata” do Reino; é viver uma religião sem
afeição pelo Mestre da Galiléia. Sem compaixão não há identificação com o
Compassivo; só quando inspirado pela compaixão é que o(a) seguidor(a) poderá
anunciar a Boa Notícia do Reino, “curar os doentes, ressuscitar os mortos, purificar os leprosos,
expulsar os demônios”. Igualmente, só a compaixão desperta outro sentimento tão
nobre, o da gratidão: “de graça recebestes, de graça deveis dar”.
Num
mundo “sem-compaixão”, a primeira coisa que devemos fazer, como cristãos, é
resgatar a compaixão de uma concepção sentimental e moralizante. Não podemos
reduzi-la à assistência caritativa ou a um sentimento eventual. “Ser
compassivo” é
modo permanente de viver e proceder.
Inspirados(as)
pela mensagem e pela atuação profética de Jesus a compaixão se expressa como um
grito de indignação absoluta: o sofrimento dos inocentes deve ser levado a
sério, não pode ser aceito como algo normal, pois é inaceitável para Deus.
O
apelo de Jesus a sermos compassivos como o Pai implica uma maneira nova de nos
relacionar com o sofrimento injusto que há no mundo. Para além de chamamentos
morais e religiosos, Ele está pedindo que a compaixão, ativa e solidária,
penetre mais e mais nos fundamentos da convivência humana, erradicando todo
tipo de sofrimento e suas causas. Só assim, o Reinado do Pai se faz presente em
nossa história.
Texto bíblico: Mt 9,36-10,8
Na oração: A grande novidade e originalidade de Jesus (sua
subversão) começou em sua maneira de olhar a realidade e de deixar-se afetar por ela. A “subversão” da
vida começa pela subversão do olhar e vice-versa. O coração sente de acordo com
o que os olhos veem, mas os olhos veem de acordo com o que sente o coração. A
realidade subverte o olhar, e o olhar subverte a realidade. Olhos que não veem,
coração que não sente. Mas os olhos não veem quando o coração não sente.
-
Sua vivência do Seguimento de Jesus é marcada pelo “olhar compassivo e
comprometido” ou por práticas piedosas alienadas, que não o(a) projetam em
direção aos mais sofredores?
Pe.
Adroaldo Palaoro sj
Fonte:centroloyola.org.br
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