Pier
Leone Ghezzi (Roma 1674-1755) (atribuído a) O Papa Clemente XI (Giovanni
Francesco Albani) confere o barrete cardinalício a Giulio Alberoni; 1724, óleo sobre tela. Museu
de Roma.
Duas
pinturas, uma sala de um museu, um consistório de cardeais, um auditório que é
mesa de conversa e um sínodo de bispos que já não é só de bispos. Olhados em
simultâneo, podemos encontrar nestes sinais algo sobre algumas encruzilhadas
actuais do catolicismo.
Numa
sala do Museo di Roma, há duas telas atribuídas a Pier Leone Ghezzi
(1674-1755). Numa delas, vê-se o Papa Clemente XI (Giovanni Francesco Albani) a
conferir o barrete cardinalício a Giulio Alberoni; na outra, é Inocêncio X
(Giambattista Pamphili) que entrega o barrete a Fabio Chigi. Todos os apelidos
– Albani, Alberoni, Pamphili ou Chigi – são de importantes famílias de
Roma, que durante os séculos do Renascimento lutavam entre si para conseguir
lugares no papado ou na instituição cardinalícia. Esses nomes estão hoje
perpetuados em palácios, museus, obras de arte…
Aproximando
o olhar, percebemos que alguma coisa mudou: o Papa já não usa a tiara (o chapéu
que simbolizaria a autoridade papal como pastor universal e o seu poder
temporal), algumas das vestes são diferentes, o chapéu vermelho e redondo caiu
em desuso. Surgido no e com o Renascimento (a Idade Média tem as costas muito
largas para o que é mau, mas essa seria outra conversa), muito do que estes
dois quadros retratam ainda subsiste na Igreja, num modelo construído de poder,
fausto e nobreza. Tal modelo esteve na origem da própria divisão do
cristianismo ocidental, com a ruptura de Lutero e a Reforma protestante, como o
próprio Papa Francisco reconheceu já: “Creio que as intenções de Lutero não eram
erradas: era um reformador”, disse o Papa Francisco, em 26 de Junho de 2016, na
conferência de imprensa a bordo do avião de regresso a Roma, vindo da Arménia.
“Naquele tempo (…) a Igreja não era propriamente um modelo a imitar: havia
corrupção na Igreja, havia mundanidade, havia apego
ao dinheiro e ao poder.”
Pier
Leone Ghezzi (Roma, 1674-1755), (atribuído a), Inocêncio X (Giambattista Pamphili) entrega o barrete cardinalicio
a Fabio Chigi;
1724, óleo sobre tela. Museu de Roma.
As
duas obras de Ghezzi, pintadas há 300 anos, podem ser tomadas como retratos dos
consistórios que se vão sucedendo, ainda neste século XXI – e de que o último,
de sábado passado, é apenas mais um exemplo. O discurso dos papas, claramente,
mudou. João Paulo II, Bento XVI e sobretudo Francisco têm insistido na ideia de
que os cardeais já não são “príncipes” da Igreja e têm uma missão de serviço a
toda a Igreja, através da sua função de conselheiros do Papa. Mas tudo, a
começar nas vestes (usadas apenas para ocasiões especiais e que custam pequenas
fortunas) e a acabar na linguagem eclesiástica sobre o tema (continua, por
exemplo, a falar-se da “elevação” a cardeal) remete para o oposto disso.
Não
estão em causa as pessoas concretas investidas sábado passado como cardeais ou
o conjunto do Colégio Cardinalício. É mesmo a instituição e o modelo. Para
acentuar o contraste referido, o último consistório decorreu quatro dias antes
do início formal de um sínodo onde, pela primeira vez, leigos e mulheres têm
direito a voto. Um sínodo que pretende debater os caminhos de futuro sobre a
vida da Igreja Católica e a sua missão no mundo contemporâneo. Por isso, não
podia ser maior o contraste entre a visão de poder e fausto que, apesar das
mudanças, ainda predomina numa cerimónia de consistório, de um lado, e a Aula
Paulo VI, do outro, transformada numa grande mesa de conversa para o sínodo.
Os
títulos de cardeais, cónegos, monsenhores ou outras “dignidades” são muitas
vezes vistos como uma espécie de prémio de carreira. Servem para fazer
distinção de cargos, honrarias e pessoas. Tal como as formas de tratamento:
eminências, reverendos ou suas reverências (ou seja, que devem ser
reverenciados), “Dom” (abreviatura do Domini, os senhores com os seus domínios)…
Uns e outras são uma negação absoluta de princípios do Evangelho no qual a
Igreja se funda: “Não vos chameis mestres, porque um só é o vosso Mestre, que é
Cristo.” (Mateus 23, 10); “Reconheço que Deus não faz acepção de pessoas”
(Actos dos Apóstolos 10, 34).
Ainda
mais, o cardinalato é uma instituição que vem dos séculos XI/XII. O próprio
nome de consistório tem origem na antiga Roma: era “o conselho privado do
imperador formado pelos seus colaboradores mais próximos”, como se explica na
página do Pontifício Instituto Superior
de Direito Canónico, do Rio de Janeiro (Brasil).
Pier
Leone Ghezzi (atribuído a); (Roma 1674 – 1755), Inocêncio X (Pamphili) entrega o barrete cardinalicio a Fabio
Chigi (pormenor); 1724, óleo
sobre tela. Museu de Roma.
O
Papa, como qualquer líder de qualquer instituição, precisa de um grupo de
conselheiros ou assessores, função que pode ser assegurada por bispos, padres,
leigos (incluindo mulheres, já agora), que possam ajudar a reflectir, pensar e
aconselhar. A outra função do colégio, a eleitoral, pode também ser
reconfigurada. Desde logo, para evitar que, na prática, seja o Papa em funções
(quem quer que ele seja) a escolher o seu sucessor, já que é ele que nomeia
quem faz parte desse grupo.
Em
várias opções estou mais próximo do caminho proposto por Francisco do que dos
anteriores pontificados e considero positivas várias das suas escolhas. Mas
continuo a considerar que este é um jogo viciado e que o modo de escolher o
Papa deve, por isso, ser revisto. Se a solução pode não ser fácil, ela pode
passar pelos presidentes das conferências episcopais de todo o mundo, por
superiores gerais de congregações religiosas, por responsáveis de movimentos laicais
e outras instituições católicas. Uma Igreja Católica (ou seja, universal) tem
de procurar, hoje, um modelo de escolha da sua liderança que seja mais
universal do que o actual. Admitindo, como ficou dito, que a solução não será
fácil e sabendo que o discernimento espiritual tem de ser obrigatório.
O
cardinalato, instituição que remete para honrarias, privilégios e poder, vem do
segundo milénio do cristianismo, pode por isso acabar no início do terceiro.
Este pode ser também um debate para o sínodo e para os próximos anos.
Fonte:setemargens
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