sábado, 18 de novembro de 2023

TOLENTINO MENDONÇA: A COZINHA É MAIS ESPIRITUAL DO QUE SE PENSA

Sentados à mesa de Deus. Assim se reúnem os fiéis para celebrar a fé e a religião. Com base nessa premissa, Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti escreveu A Mesa de Deus. Os Alimentos da Bíblia, que pretende registar todas as referências sobre os alimentos, a cozinha, a refeição, o prazer e a dádiva da comida que aparecem no Antigo e no Novo Testamento. O livro foi apresentado pelo jornalista Francisco José Viegas na última  quinta-feira, 9 de novembro, as 18h30, no Grémio Literário, em Lisboa.
O livro pretende ainda estudar os hábitos alimentares nos tempos bíblicos: o que se comia, como se comia, como se preparavam os alimentos e que regras e interditos foram sendo formulados e aceites ao longo do tempo.
Pão, vinho, vinagre, azeite, mel, sal, leite e derivados, água, assim como ervas e especiarias, cereais, leguminosas, arbustos e árvores são ingredientes desta obra, nascida de uma conversa da autora, jornalista e crítica gastronómica, com o então padre, hoje cardeal José Tolentino Mendonça, que assina o prefácio, cujo texto o 7MARGENS reproduz a seguir.
Entrar na Bíblia pela porta da cozinha
Texto de José Tolentino Mendonça
 Caravaggio, A Ceia em Emaús (1601): “Num primeiro relance, poderá parecer estranho um livro que se ocupa dos alimentos e da cozinha da Bíblia: não é essa a entrada de acesso principal, diríamos todos..” National Gallery Londres
Na arquitetura de muitas casas há duas portas: aquela principal, a mais utilizada, por onde circulam os hóspedes com quem fazemos cerimónia; e a porta de serviço que, normalmente, dá acesso direto à cozinha, por onde passam apenas aquelas pessoas que têm grande familiaridade com a casa. Num primeiro relance, poderá parecer estranho um livro que se ocupa dos alimentos e da cozinha da Bíblia: não é essa a entrada de acesso principal, diríamos todos. A verdade é que sendo, incontestavelmente, o livro mais conhecido e frequentado do mundo, uma parte significativa dos seus leitores ainda faz muita cerimónia. Isto é, ainda não se aventurou numa imersão total na Escritura como, aliás, a própria Bíblia reclama que façamos. O ingresso da cozinha está reservado para quem adquiriu uma familiaridade completa com a casa, e o mesmo exemplo podemos aplicar ao Livro dos Livros. Não é, por acaso, que para construir este fascinante volume, Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti precisou de mais de uma década. É que a cozinha requer um pacto estreito de relação que não se improvisa, que não se concretiza de imediato, mas reclama lentidão, frequência, disponibilidade, acompanhamento minucioso, escuta em profundidade, quotidiano partilhado. A leitura tem de se tornar recorrente, detalhada e íntima para que se confunda com a existência doméstica, para que respire dentro dela. O doméstico não é menos: é mais! É preciso colar-se à letra do livro, pele com pele, valorizá-lo com aquela atenção intransigente, humilde e interminável que nos dá o amor, fazer-se invisível, olhar para o livro em horas diferentes e de angulações diversas, quedar-se a olhar para ele no escuro, contemplá-lo de forma gratuita, silenciosa, enamorada, sem porquê. A cozinha não tem a pretensão de representar o mais importante e, ainda menos, a totalidade. A cozinha é um aspecto da casa. A sua grandeza vem de se colocar ao serviço, está na arte de secundar. Inesquecível e elegante arte, devemos dizer. Este livro não compete com os dicionários, as concordâncias, os comentários que fazem habitualmente a riqueza da biblioteca que suporta a hermenêutica bíblica. Junta-se a eles como mais um instrumento, como assessoria necessária, como mapa para o prazer de ler. A interpretação deve tornar-se sempre mais polifónica ou poliédrica para respeitar, para aceder à natureza polissêmica da vida espelhada no texto sacro. Este livro participa desse esforço coral de pesquisa.
Pensar uma casa a partir da cozinha em nada atenta contra a sua natureza sagrada. Pelo contrário: há uma compreensão que se abre para aquilo que uma casa significa, como se assim tocássemos o seu segredo. Declarar, por exemplo, que uma cozinha garante a vida material, expressa pouco sobre a função real da cozinha, pois refere simplesmente (ou preguiçosamente) o óbvio. A cozinha é, numa casa, um motor da vida espiritual. Quem não descobriu isso, não descobriu o significado antropológico da comida e o instrumento de humanização que a mesa representa. Sim, uma mesa não é só uma mesa. Também por isso, para os leitores da Bíblia, o livro de Maria Lecticia oferecerá estratos complementares de conhecimento: constitui uma espécie de micro-história da Bíblia; representa um útil mapeamento cultural dos mundos e dos atores bíblicos; permite-nos uma viagem pelas formas objetivas de vida e suas tradições; dá-nos uma ideia dos produtos acessíveis, do impacto do clima, do tipo de economia; enumera para nós os saberes que transparecem na fabricação; abre-nos a janela para a sociologia das suas gentes; faz-nos participantes dos rituais religiosos, do conteúdo do espaço familiar, da hierarquia e da versatilidade das relações. Mas, ao mesmo tempo, é um livro de espiritualidade bíblica, um compêndio de exegese, uma refeição da Palavra. Não é apenas um ensaio exaustivo sobre a mesa bíblica: é um convite a entrar, um abrir da mesa, uma coreografia de odores, uma prática do saborear.

Pieter Aertsen, Cristo com Maria e Marta: “A cozinha é uma máquina de suscitar desejo. Não nos devemos admirar que uma das últimas palavras de Jesus tenha sido: «Desejei ardentemente comer esta Páscoa convosco», associando sabiamente a refeição ao desejo.” 
Lembro-me do conselho que repetia o teólogo e pedagogo Rubem Alves: que antes de iniciarem o itinerário de aprendizagem, alunos e professores deveriam passar por uma cozinha. Nesse lugar compreendemos que os banquetes não têm início com a comida que se serve. Eles começam, sim, com a fome. O verdadeiro cozinheiro deve dominar, antes de tudo, a arte de produzir fome… Isso que o verso de Adélia Prado testemunha como um mantra exato: «Não quero faca nem queijo; quero é fome». Que é como quem diz: quero a tarefa primeira que é acender o desejo. A cozinha é uma máquina de suscitar desejo. Não nos devemos admirar que uma das últimas palavras de Jesus tenha sido: «Desejei ardentemente comer esta Páscoa convosco» (Lc 22,15), associando sabiamente a refeição ao desejo. Se cada um de nós pensar na sua autobiografia alimentar é precisamente isso que constata. E tal pode ser estendido ao desenvolvimento da espécie humana: a cozinha tornou-nos desiderantes, sonhadores, criativos. Segundo Richard Wrangham, primatologista da Universidade de Harvard, foi o aparecimento da cozinha a permitir aos nossos antepassados triplicar as dimensões do cérebro. Ele não hesita em dizer que, «abrindo estrada à expansão do cérebro humano, a cozinha tornou possíveis resultados cerebrais como a pintura nas cavernas, a composição das grandes sinfonias ou a invenção da Internet». A cozinha e a mesa não reduzem o mundo: ampliam-no surpreendentemente.
Na emblemática obra intitulada O cru e o cozido, o antropólogo Claude Lévi-Strauss debruça-se sobre alguns mitos amazónicos que descrevem a origem da cozinha, e aí fica claro como esta é um motivo humano fundamental. O cru representa o estado natural, quando o homem recolector se alimentava apenas daquilo que encontrava acessível em torno a si. O cozido é um salto civilizacional extraordinário, representa uma das transições antropológicas vertiginosas, nada menos do que a passagem da natureza para a cultura. De facto, não se trata apenas de um passo grandioso na história da autonomização da nossa espécie. A mesa documenta, para lá da maturação do dado biológico, a emergência do simbólico. Há um conhecimento tipicamente humano que passa pela cozinha e só através dela se decifra.
Para quem quiser ver, a alimentação é um tema particularmente denso, onde avultam e se colhem alguns dos códigos mais intrínsecos das culturas. A mesa é um poderoso sistema simbólico, um observatório de práticas essenciais de sentido. Os antropólogos insistem que se entendermos como se desenvolve uma refeição, ficamos na posse da estrutura interna, dos valores e hierarquias do grupos humano nela envolvido. Quando se chega a perceber o conteúdo e a lógica da alimentação, a ordem que regula a cozinha e a mesa (o que se come, como se come, com quem se come, o significado dos diversos lugares e funções à mesa…), alcança-se um saber antropológico determinante, dos outros e de nós próprios. Maria Lecticia escreveu este livro também para que nos pudéssemos ler.
Por outro lado, se atendermos à massa impressionante de prescrições culinárias presentes na Bíblia, não nos parecerá despropositado e excêntrico que se fale de uma autêntica teologia alimentar ou se identifique no texto sagrado judaico e cristão um esplêndido catálogo de receitas. De fato, a revelação bíblica também se apreende comendo. E a sua leitura constitui também uma maravilhosa iniciação aos sabores. As escolhas alimentares fundamentaram a sua identidade cultural e religiosa. Como hoje sedimentam a nossa.
De certeza que a escrita deste livro alterou a percepção que a sua autora tinha da Bíblia, e poderá alterar a dos leitores. Mas no melhor dos sentidos. Tornando de casa o leitor, ajudando-o a perceber a articulação entre saber e sabor, convocando-o para uma familiaridade com este texto inesgotável, desconstruindo o automatismo das leituras abstratas e gnósticas que olham para a Bíblia como um livro de verdades, onde a letra é relativizada e desconhecida. Tudo conta, afinal, no processo de revelação. Mesmo aquilo que parece circunstancial ou que considerámos de forma apressada um décor narrativo. Ainda bem que a narratologia contemporânea recorda que o relato tem uma economia coerente que se pode resumir assim: todos os elementos que surgem na narrativa são significativos para a construção do seu sentido. A torrente de passagens bíblicas referentes a alimentos e à mesa que Maria Lecticia Cavalcanti, com mão informada, com mão pacientíssima e brilhante, aqui revisita não são, portanto, uma marginalia destinada a ser etiquetada sob a categoria de «curiosidades ociosas». Entrar na Bíblia pela porta da cozinha é um argumento mais sério do que se possa supor. E também mais espiritual. O título escolhido para esta obra está certo. E o livro dá a provar o que promete. Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti oferece-nos aqui uma daquelas experiências que não vamos querer esquecer.
Fonte: setemargens

 


 

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